GUY DE MAUPASSANT (1850-1893 | França)
Um dos criadores do conto moderno, como o russo Tchecov, Maupassant
ganhou reconhecimento instantâneo coma publicação de Boule de
Suif, em 1880. Entre os inúmeros contos que publicou em vida são
muitos os que têm a loucura como tema. (Como o escolhido para nossa
antologia, que une loucura e crime.) Aos quarenta anos, Maupassant
tem sua carreira praticamente encerrada, e três anos depois, em
1893, ele morre em circunstâncias dramáticas, em um... asilo de
loucos. Sua importância como contista é universal: dificilmente
encontraremos algum país do mundo em que alguns, ou uma geração
inteira de contistas, não tenham sofrido sua influência.
Ele morreu como chefe de um tribunal de alta instância, magistrado
íntegro cuja vida impecável era citada em todas as cortes da
França. Advogados, jovens conselheiros e juízes o cumprimentavam
inclinando-se profundamente, em sinal de enorme respeito, diante de
sua figura alta, branca e magra, iluminada por dois olhos brilhantes
e profundos.
Passara a vida perseguindo o crime e protegendo os
fracos. Escroques e assassinos nunca haviam tido inimigo mais
temível, pois ele parecia ler, no fundo de suas almas, seus
pensamentos secretos, e desvendar, com um passar de olhos, todos os
mistérios de suas intenções.
Morreu então, aos 82, cercado de
homenagens e acompanhado pelo lamento de todo um povo. Soldados de
calças vermelhas o escoltaram até seu túmulo e homens de gravatas
brancas lançaram sobre seu caixão palavras tristes e lágrimas que
pareciam verdadeiras. Pois bem, eis o estranho papel que o escrivão,
desnorteado, descobriu na escrivaninha onde ele costumava trancar os
dossiês dos grandes criminosos. Seu título era:
POR QUÊ?
20 de junho de 7857
- Saio da sessão? Condeno Blondel à morte! Por
que, afinal, havia aquele homem matado seus cinco filhos? Por quê?
Muitas vezes encontramos pessoas para quem destruir a vida é uma
volúpia. Sim, sim, deve ser uma volúpia, talvez a maior de todas,
pois matar não é o que mais se assemelha a criar? Fazer e destruir.
Estas duas palavras encerram a história dos universos, toda a
história dos mundos, tudo o que existe, tudo! Por que matar é
embriagador? Pensar que ali está um ser que vive, que anda, que
corre. .. Um ser? O que é um ser? Essa coisa animada, que traz em si
o princípio do movimento e uma vontade que determina esse movimento!
Essa coisa a nada se prende.
Seus pés não se unem ao solo. É um grão devida que se mexe sobre
a terra; e este grão devida, vindo não sei de onde, podemos
destruir como quisermos. E então nada, mais nada. Apodrece, acaba.
26 de junho
- Por que, então, é crime matar? É, por quê? Pelo
contrário, é a lei da natureza. Todo ser tem como missão matar:
ele mata para viver e mata por matar. Matar está em nossa índole; é
preciso matar!
O animal mata sem parar, o dia todo, a todo instante
de sua existência. O homem mata sem parar para se alimentar, mas
como tem necessidade de matar também por volúpia, ele inventou a
caça!
A criança mata os insetos que encontra, os passarinhos, todos
os pequenos animais que lhe caem nas mãos. Mas isto não bastava à
irresistível necessidade de massacre que há em nós.
Não é
suficiente matar o animal, precisamos também matar o homem.
Antigamente, satisfazia-se este desejo com os sacrifícios humanos.
Hoje, a necessidade de viver em sociedade fez do assassinato um
crime. Condena-se e pune-se o assassino!
Mas como não podemos nos
entregar a este instinto natural e impiedoso da morte, aliviamo-nos
de tempos em tempos por meio de guerras onde todo um povo destrói
outro povo. Temos então uma orgia de sangue, uma orgia na qual se
precipitam os exércitos e da qual continuam a se embebedar os
burgueses, mulheres e crianças que lêem, à noite, sob a
lamparina, a narrativa exaltada dos massacres. E poder-se-ia dizer
que desprezamos aqueles destinados a realizar essas carnificinas de
homens! Não. Nós os cobrimos de honrarias!
Nós os vestimos com
ouro e tecidos brilhantes, eles usam plumas na cabeça, sobre o
peito, e nós lhes damos cruzes, recompensas, títulos de toda
natureza. Eles são orgulhosos, respeitados, amados pelas mulheres,
aclamados pela multidão, unicamente porque têm por missão espalhar
o sangue humano! Eles arrastam pelas ruas seus instrumentos de morte
que o passante vestido de negro olha com inveja. Porque matar é a
grande lei lançada pela natureza no coração do ser! Nada há de
mais belo e mais honorável do que matar!
30 de junho
- Matar é a lei; porque a natureza ama a eterna
juventude. Ela parece gritar em todos os seus atos inconscientes:
"Depressa! Depressa! Depressa!" Mais ela destrói, mais se
renova.
2 de julho
- O ser, o que é o ser? Tudo e nada. Pelo pensamento, ele
é o reflexo de tudo. Pela memória e a ciência, é um resumo do
mundo, do qual traz em si a história. Espelho de coisas e espelho de
fatos, cada ser humano torna-se um pequeno universo no universo! Mas
viaje, veja fervilharem as raças, e o homem nada mais é!
Mais nada,
nada! Suba num barco, afaste-se da margem coberta pela multidão e
logo nada verá além da costa. O ser imperceptível desaparece, de
tão pequeno e insignificante. Atravesse a Europa num trem veloz e olhe pela janela.
Homens, homens, sempre homens, inúmeros, desconhecidos, que
fervilham nos campos, que fervilham nas ruas; camponeses estúpidos
sabendo apenas revirar a terra; mulheres horrendas sabendo apenas
fazer a sopa do macho e engravidar.
Vá às índias, vá à China, e
continuará a ver agitarem-se milhares de seres que nascem, vivem e
morrem sem deixar mais traços do que a formiga esmagada nas
estradas.
Vá ao país dos negros, refugiados em barracos de barro;
ao país dos árabes brancos, abrigados sob uma barraca marrom que
flutua ao vento, e compreenderá que o ser isolado, determinado, não
é nada, nada. A raça é tudo! O que é o ser, o ser qualquer de uma
tribo errante do deserto?
E essas pessoas, que são sábias, não se
inquietam com a morte. O homem não conta para eles. Mata-se seu
inimigo: é a guerra. Isto já era feito outrora, de castelo em
castelo, de província em província. Sim, atravesse o mundo e veja
fervilharem os humanos incontáveis e desconhecidos.
Desconhecidos?
Ah! Eis a palavra do problema! Matar é crime porque nós enumeramos
os seres. Quando eles nascem, nós os inscrevemos, nomeamos,
batizamos. A lei os captura! É claro!
O ser que não é registrado
não conta: mate-o na campina ou no deserto, mate-o na montanha ou na
planície, dá na mesma! A natureza ama a morte; ela não pune! O que
é sagrado, por exemplo, é o estado civil! Claro! É ele quem
defende o homem. O homem é sagrado porque está inscrito no estado
civil! Respeito ao estado civil, o Deus legal! De joelhos! O estado
pode matar, porque ele tem o direito de modificar o estado civil.
Quando ele fez decapitar duzentos mil homens numa guerra, ele os
risca em seu estado civil, ele os suprime pela mão de seus
escrivães. Está feito. Mas nós, que não podemos alterar as
escrituras dos cartórios, nós devemos respeitar a vida. Estado
civil, gloriosa Divindade que reinas nos templos das municipalidades,
eu te saúdo. És mais forte que a Natureza. Ah! Ah!
3 de julho
- Matar deve ser um saboroso e estranho prazer, ter ali,
diante de si, o ser vivo, pensante; fazer um pequeno furo, apenas um
pequeno furo, ver escorrer esta coisa vermelha que é o sangue, que
faz a vida, e só ter diante de si um monte de carne mole, fria,
inerte, vazia de pensamento!
5 de agosto
- Eu, que passei minha vida julgando, condenando, matando
pelas palavras pronunciadas, matando pela guilhotina aqueles que
haviam matado pela faca, eu! eu! se eu fizesse como todos os
assassinos que atingi, eu! eu! quem saberia? Quem saberia?
Desconfiariam de mim, de mim, sobretudo se escolhesse um ser que não
tivesse qualquer interesse em suprimir?
15 de agosto
- A tentação! A tentação entrou em mim como um verme
que rasteja. Ela rasteja, ela vai; ela passeia por todo o meu corpo,
por meu espírito, que só pensa nisto: matar; por meus olhos, que sentem necessidade de
olhar para o sangue, de ver morrer; por meus ouvidos, pelos quais
passa sem cessar alguma coisa desconhecida, horrível, dilacerante e
aterradora, como o último grito de um ser; por minhas pernas, onde
treme o desejo de ir, de ir ao local onde a coisa acontecerá; por
minhas mãos que se agitam com a necessidade de matar. Como deve ser
bom, raro, digno de um homem livre, acima dos outros, senhor de seu
coração e que busca sensações refinadas!
22 de agosto
- Eu não podia mais resistir. Matei um animalzinho para
ensaiar, para começar. Jean, meu empregado, tinha um canário numa
gaiola suspensa à janela do escritório. Mandei-o fazer umas compras
e peguei o passarinho em minha mão, em minha mão na qual eu sentia
bater seu coração.
Ele sentia calor. Subi para meu quarto. De vez
em quando, eu o apertava com mais força; seu coração batia mais
depressa, era atroz e delicioso. Quase o sufoquei. Mas eu veria o
sangue.
Então peguei a tesoura, uma tesourinha de unhas, e
cortei-lhe a garganta com três golpes, bem devagar. Ele abria o
bico, tentava escapar de mim, mas eu o segurava, ah!, eu o segurava -
eu teria segurado um buldogue enraivecido - e vi o sangue escorrer.
Como é belo, vermelho, reluzente, claro, o sangue! Eu tinha vontade
de bebê-lo. Molhei nele a ponta de minha língua! É bom. Mas tinha
tão pouco sangue esse pobre passarinho! Não tive tempo de gozar
daquela visão como gostaria. Deve ser fantástico ver sangrar um
touro.
E depois fiz como os assassinos, como os de verdade. Lavei a
tesoura, lavei minhas mãos; joguei fora a água e levei o corpo, o
cadáver, para o jardim para enterrá-lo. Enfiei-o debaixo de um pé
de morango. Nunca o encontrarão. Comerei todos os dias um morango
daquele pé. Realmente, como se pode gozar a vida, quando se sabe!
Meu empregado chorou; ele acredita que seu pássaro fugiu. Como
suspeitaria de mim? Ah! Ah!
25 de agosto
- É preciso que eu mate um homem! É preciso.
30 de
agosto
Está feito. Como é pouco! Eu tinha ido passear no bosque de
Vernes.
Não pensava, não, em nada. Eis uma criança no caminho, um
garotinho que comia um pão com manteiga. Ele pára ao me ver passar
e diz:
- Bom dia, seu presidente. E o pensamento me entra na cabeça:
"E se eu o matasse?"
Respondo:
- Está sozinho, meu menino?
- Estou sim, senhor.
- Sozinho no bosque?
- Estou sim, senhor.
A vontade de matá-lo me inebriava como álcool. Aproximei-me
devagar, certo de que ele iria fugir. E eis que o pego pela
garganta... eu o aperto, aperto-o com toda a minha força! Ele me
olhou com olhos de pavor! Que olhos! Redondos, profundos, límpidos,
terríveis! Nunca senti uma emoção tão brutal.. . mas tão curta!
Ele segurava meus punhos com suas mãozinhas, e seu corpo se retorcia
como uma pluma ao fogo. Então não se mexeu mais. Meu coração
batia, ah! o coração do pássaro! Atirei o corpo no fosso, depois
joguei mato por cima.
Voltei para casa, jantei bem. Como é pouco! À
noite, eu estava muito alegre, leve, remoçado, estive na casa do
prefeito. Acharam-me espiritual. Mas não vi o sangue! Estou
tranqüilo.
30 de agosto
- Descobriram o cadáver. Procuram o assassino. Ah! Ah!
1 de setembro
- Prenderam dois andarilhos. Faltam provas.
2 de setembro
- Os pais vieram me ver. Choraram! Ah! Ah!
6 de outubro
- Nada descobriram. Algum vagabundo errante teria feito
aquilo. Ah! Ah! Se eu tivesse visto o sangue escorrer, acho que
estaria tranqüilo agora.
10 de outubro
- A vontade de matar me corre pelos ossos. É
comparável aos males de amor que nos torturam aos vinte anos.
20 de outubro
- Mais um. Eu ia pela margem do rio, depois do almoço.
E vi, debaixo de um salgueiro, um pescador adormecido. Era meio-dia.
Uma pá parecia estar, de propósito, plantada num campo de batatas
ali perto. Eu a apanhei, voltei; ergui-a como uma clava e, de um só
golpe, com a lâmina, rachei a cabeça do pescador. Ah! ele sangrou!
Um sangue rosado, cheio de miolos!
Escorria para a água, bem
devagar. E eu parti num passo grave. Se me tivessem visto! Ah! Ah! Eu
daria um excelente assassino.
25 de outubro
- O caso do pescador provoca um grande tumulto. Acusam
seu sobrinho, que pescava com ele.
26 de outubro
- O promotor afirma que o sobrinho é culpado. Todos na
cidade acreditam nisso. Ah! Ah!
27 de outubro
- O sobrinho defende-se bem mal. Tinha ido à aldeia
comprar
pão e queijo, afirma. Jura que mataram seu tio durante sua ausência!
Quem acreditaria nele?
28 de outubro
- O sobrinho quase confessou, de tanto que o fizeram
perder a cabeça! Ah! Ah! A justiça!
15 de novembro
- Há provas arrasadoras contra o sobrinho, que
herdaria os bens do tio. Eu presidirei o julgamento.
15 de janeiro
- À morte! à morte! à morte! Fiz com que fosse
condenado à morte. Ah! Ah! O advogado de acusação falou como um
anjo! Ah! Ah! Mais um. Irei assistir à execução.
10 de março
- Acabou. Ele foi guilhotinado esta manhã. Está muito
bem morto! Muito bem! Aquilo me deu prazer! Como é bonito ver cortar
a cabeça de um homem! O sangue jorrou como uma corrente, como uma
corrente! Oh! Se eu pudesse, gostaria de me banhar nela.
Que vontade
de me deitar ali embaixo, de receber aquilo em meus cabelos e em meu
rosto, e de me levantar todo vermelho, todo vermelho! Ah! Se
soubessem! Agora esperarei, posso esperar. Seria preciso tão pouco
para me deixar apanhar.
O manuscrito continha ainda muitas páginas, mas sem relatar qualquer
crime novo. Os médicos alienistas, a quem ele foi confiado, afirmam
existir no mundo muitos loucos ignorados, tão hábeis e tão
temíveis quanto este monstruoso demente.
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