-Entrar-

O Barba Azul

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários



CHARLES PERRAULT (1628-1703 | França)

Um volume publicado anonimamente, Contes de Ma Mere l'Oie ("Histórias da Mamãe Gansa"), mas de autoria de um sisudo advogado da arquiteto da época do Rei-Sol chamado Charles Perrault, tem embalado a infância do mundo todo há pelo menos três séculos. Quem não ouviu histórias como O Pequeno Polegar, A Gata Borralheira, O Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas e outras tantas? Muitos especialistas em literatura infantil já observaram a violência implícita nestas historietas aparentemente ingênuas. Mas o que talvez nos surpreenda é descobrir num desses contos, exatamente neste O Barba-Azul, um inegável pioneirismo numa vertente do policial contemporâneo: a do serial-killer. (No século XX, este conto "infantil" ainda dialogava com a literatura contemporânea: Anatole France reviu o "caso criminal" deste estranho personagem em As Sete Esposas do Barba-Azul. Na sua versão, "o herói" é reabilitado, por ter sido vítima inocente de suas sete esposas.)


Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis requintados e carruagens douradas; mas por infelicidade esse homem tinha a barba azul: detalhe que o fazia tão feio e tão terrível que não havia mulher nem moça que não corresse ao vê-lo. Uma dama de alta linhagem, sua vizinha, era mãe de duas filhas absolutamente bonitas. O homem pediu uma delas em casamento, deixando que a vontade materna fizesse a escolha. 
Nenhuma das duas o aceitava, e uma passava a indicação para a outra, pois nenhuma queria aceitar um homem de barba azul. Não lhes era agradável tampouco a circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse que fim levaram. 
Para conhecer as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a mãe e três ou quatro amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma de suas casas de campo, onde passaram nada menos que oito dias. E foi então só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e comidinhas: ninguém dormia, passavam a noite pregando peças umas nas outras; afinal, tudo transcorreu às mil maravilhas, e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul assim, e que era homem de muita dignidade. 
Assim que voltaram para a cidade, o casamento foi realizado. No fim de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma viagem de três semanas, no mínimo, à província, a fim de resolver um negócio importante; pedia-lhe que se divertisse à vontade durante a sua ausência mandasse buscar suas amigas, levasse-as para o campo, se quisesse, comesse do bom e do melhor. 
- Aqui estão as chaves dos guarda-móveis - disse ele -; aqui as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos dias especiais; aqui as dos meus cofres-fortes onde estão meu ouro e minha prata, as do cofre das minhas jóias, e aqui a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete que fica no extremo da galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde quiser; mas nesse pequeno gabinete, eu a proíbo de entrar, e a proíbo de tal maneira que, se acontecer de você chegar a abri-lo, não há nada que você não possa esperar da minha ira. 

Ela prometeu cumprir à risca tudo aquilo que lhe tinha sido ordenado: e ele, depois de beijá-Ia, tomou sua carruagem e partiu. As vizinhas e as amigas sequer esperaram que as mandassem buscar para ir à residência da jovem esposa, tão ansiosas estavam para ver todas as riquezas da casa, pois não haviam ousado ir até lá quando o marido estava presente por causa da sua barba azul que lhes causava medo. E ei-Ias sem maior perda de tempo a percorrer os quartos, os gabinetes, os vestiários, cada um mais bonito do que o outro. Subiram depois aos guarda-móveis, onde não se cansaram de admirar a quantidade e a beleza das tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, das mesas e dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornamentos, uns de vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já se poderiam ter visto. Não se cansavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava para abrir o gabinete do porão. Sentiu-se tão levada pela curiosidade que, sem pensar que seria uma indelicadeza deixar as vizinhas sozinhas, desceu até o porão por uma escada estreita e oculta, e com tamanha precipitação que por duas ou três vezes achou que ia quebrar o pescoço. 
Ao chegar à porta do gabinete, deteve-se, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por ter sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a conseguiu vencer: segurou a pequena chave e, trêmula, abriu a porta do gabinete. Nada viu, a princípio, pois as janelas estavam fechadas; segundos depois começou a perceber que o assoalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, corpos presos ao longo das paredes. (Eram todas as mulheres que Barba-Azul desposara e que, uma a uma, havia estrangulado.) 
Pensou que ia morrer de susto, e a chave do gabinete caiu-lhe da mão assim que a retirara da fechadura. Depois de recobrar um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu para o quarto a fim de se refazer; não o conseguia porém, tão grande lhe era o tumulto. Ao perceber que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue teimava em não desaparecer; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedra-pomes; em vão: o sangue permanecia, pois a chave era de fada e não havia meio de limpá-Ia totalmente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro. Barba-Azul retornou de viagem logo nessa mesma noite, e disse haver recebido, no caminho, cartas com a notícia de que o negócio que o fizera partir acabara de se realizar, com vantagens para ele. A mulher fez o que pôde para se mostrar encantada com o inesperado retorno. 
No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou; mas sua mão tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem maiores esforços o que havia acontecido. 
- Por que é que a chave do gabinete não está junto com as outras? perguntou-lhe. 
- Devo tê-Ia deixado lá em cima, na minha mesa. 
- Quero a chave aqui e agora, já, já! 
Depois de muitas delongas, a mulher teve de entregá-Ia. Barba-Azul examinou-a e disse: 
- Por que este sangue na chave? 
- Não sei nada disso - respondeu a pobre criatura, mais pálida do que a morte. 
- Você não sabe de nada - continuou ele -, mas eu sei muito bem: você tentou entrar no gabinete! Está certo, minha senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado das que lá encontrou... 
Ela se jogou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos os sinais de um arrependimento sincero por não haver sido obediente. Bela e desesperada como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba Azul tinha o coração mais duro do que um rochedo: 
- Tem de morrer, minha senhora, e logo. -
 Visto que tenho de morrer - respondeu ela, fitando-o com os olhos banhados de lágrimas -, dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus. 
- Dou-lhe meio quarto de hora - replicou Barba-Azul - e nem um momento a mais. 
Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe: 
- Minha irmã Ana (era este o seu nome), eu te suplico, sobe ao alto da torre para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que viriam me ver hoje e, se os vir, faz-lhes sinal para que se apressem. 
A irmã Ana subiu para a torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando: 
- Ana, minha irmã, não estás vendo ninguém? 
E a irmã Ana lhe respondia: 
- Não vejo nada a não ser o sol que brilha e a erva que verdeja. 
Enquanto isso, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força: 
- Desce depressa ou eu subirei aí. 
- Mais um momentinho, por favor - respondia-lhe a mulher. 
E, em seguida, baixinho: 
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém? 
E a irmã Ana respondia: 
- Não vejo nada a não ser o sol que brilha e a erva que verdeja. 
- Desce depressa - bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí. 
- Já vou - respondeu a mulher. E depois:
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém? 
- Só vejo - respondeu a irmã Ana - uma grossa poeira que vem da banda de lá.
- São meus irmãos? 
- Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros. 
- Não vais descer? - bradava Barba-Azul. 
- Mais um momento - respondia a mulher. E depois: 
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém? 
- Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm do lado de cá, mas ainda estão muito longe... Louvado seja Deus! - exclamou pouco depois. 
- São meus irmãos; estou fazendo sinal para eles, tanto quanto me é possível, para que se apressem. Barba-Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. 
A pobre mulher desceu e jogou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos. 
- Isto de nada adianta - disse Barba-Azul. 
- Você precisa morrer. 
Em seguida, segurou-a com uma das mãos pelos cabelos e ergueu, com a outra, o cutelo no ar, a ponto de cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher. 
- Não, não - disse ele -, encomenda bem tua alma a Deus. 
E, erguendo mais o braço... Naquele momento, bateram à porta com tanta força que Barba-Azul parou subitamente. Abriram, e logo se viram entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram na direção de Barba-Azul. Ele percebeu que eram os irmãos da sua esposa, um deles, dragão e outro, mosqueteiro, e fugiu sem maior demora, para se salvar; mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa. 
Atravessaram-no a fio de espada e o deixaram morto. A pobre dama estava tão morta quanto o marido, sem maiores forças para levantar-se e beijar os irmãos. Revelou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão pela qual sua mulher tornou-se dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento da irmã Ana com um jovem fidalgo que a amava há muito; outra parte na compra do posto de capitão para os dois irmãos; e o resto no casamento dela própria com um homem mui distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba-Azul.

Readmore...

O rapto de Europa - Mitologia Grega

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários


Há muito tempo atrás, havia no reino de Tiro um rei, Agenor, cuja filha era muito bela. O nome dela era Europa, e Júpiter apaixonou-se perdidamente por sua beleza.
— Que linda mulher! — exclamava o deus dos deuses, cuidando, no entanto, para não ser ouvido por Juno, sua ciumenta esposa. — Tenho de possuí-la, a qualquer preço.
Movido por essa determinação, Júpiter decidiu utilizar-se de seu estratagema principal, ou seja, o de se metamorfosear em algum ser ou coisa.
Por alguma razão, Júpiter jamais aparecia diante das suas eleitas na sua forma pessoal, preferindo assumir sempre uma outra aparência qualquer. Assim, depois de muito pensar, decidiu transformar-se num grande touro, branco como a neve.
Completada a transformação, Júpiter desceu à Terra envolto numa grande nuvem. Em uma das praias do rei de Tiro e pai de Europa, um rebanho dócil de touros pastava num relvado próximo ao mar. Sem que ninguém percebesse, uma grande nuvem foi se aproximando, até que dela desceu o grande touro, indo colocar-se em meio aos demais.
 Os seus novos colegas de rebanho, a princípio assustados com aquela súbita aparição, abriram um espaço assim que ele pousou sobre a grama. No entanto, como o alvo touro se mostrasse manso e dócil, teve logo sua presença admitida, sem maiores contestações. Ali esteve misturado aos demais, contrastando em relação ao pelo escuro dos outros touros, até que de repente a bela Europa surgiu com suas amigas, rindo e cantando por entre as areias da praia.
As suas companheiras eram belas, também, mas, assim como Júpiter destacava-se em seu rebanho, a filha de Agenor destacava-se em meio ao seu encantador e animado grupo. Era uma manhã luminosa, o sol brilhava sem ferir os olhos, e o céu tinha um tom manso e azulado como os olhos do touro, que observavam, atentos, a aproximação de sua amada.
— Vejam só que belo rebanho! — exclamou Europa, ao ver os boa ajuntados. — Mas o que será aquela mancha branca em meio a eles?
A jovem, destacando-se do grupo, avançou correndo, levantando a barra da sua túnica rendada, que lhe descia até um pouco abaixo dos joelhos.
Quando chegou perto de Júpiter, seus seios arfavam sob a fina gaze de suas vestes. Os grandes olhos azuis do touro branco pousaram sobre a face corada de Europa, de tal modo que a moça não pôde deixar de observar o seu intenso brilho.
— Um touro branco! — disse a moça, encantada. — E que lindos olhos ele tem!
Todas as amigas ajuntaram-se em torno ao animal, que, no entanto, tinha seus grandes olhos azuis postos somente sobre a bela filha do rei.
A moça, postando-se ao lado dele, começou a alisar o pelo sedoso de seu dorso branco, enquanto admirava os seus pequenos e delicados cornos, que tinham o brilho cristalino das melhores pérolas. Embora o aspecto do animal fosse suave, a sua musculatura era rija, o que Europa pôde comprovar ao alisar o seu pescoço. Alguns espasmos musculares percorriam o pelo do touro a cada vez que Europa o acariciava.
De vez em quando o animal inclinava a cabeça, fazendo-a deslizar discretamente pelo flanco de Europa, erguendo com suavidade a fímbria de suas vestes. A filha de Agenor, contudo, permitia tais liberdades por julgá- las apenas um brinquedo inocente do magnífico animal. Retirando-o do grupo, Europa levou-o para passear nas areias da praia, dando-lhe com as mãos algumas flores, que o touro comeu alegremente.
Depois, ele pôs-se a correr ao redor da moça, enquanto as outras o perseguiam, fazendo-lhe festas e agrados. Como o sol começasse a se tornar quente demais — pois era o auge do verão -, as moças, cansadas momentaneamente da brincadeira, despiram-se para dar um breve mergulho no mar. Europa, entretanto, preferiu ficar na areia, a brincar com seu touro branco. Assim, enquanto suas amigas banhavam-se, Europa colhia outras flores, compondo com elas uma bela grinalda que depositou em seguida sobre os chifres do animal.
Depois, montada sobre as suas costas, foi conduzida por ele num trote manso. Enquanto o animal a levava, emitia um pequeno mugido, em sinal de orgulho e satisfação. As amigas de Europa, entretanto, ao verem a nova diversão que a filha do rei inventara, saíram todas correndo do mar, num passo rápido que fazia balançar seus pequenos seios molhados.
Júpiter, porém, ao vê-las avançarem para si, temeu que fossem desalojar Europa das suas costas. Realmente, logo uma delas tocou a cabeça do touro, com a mão coberta de sal:
— Vamos, Europa, deixe-nos andar um pouco! — disse a moça, impaciente.
Júpiter, porém, aproveitando a relutância que Europa manifestava em descer. lançou-se para a frente, num salto ágil, tomando o rumo do mar.
— Ei, esperem, aonde vão?... — exclamou uma das amigas de Europa, com as mãos pousadas na cintura. Júpiter, surdo aos gritos, arremeteu em meio às mulheres que avançavam pela água, obrigando-as a se afastarem, assustadas, para todos os lados.
— Socorro! — gritava Europa, estendendo-lhes as mãos, apavorada com o ímpeto repentino do animal.
O touro, entretanto, avançava mar adentro, deixando atrás de si as mulheres pela praia, a sacudir os braços, impotentes. Imaginando que o touro enlouquecera, temeram que tanto Europa quanto o animal terminariam afogados, logo que ultrapassassem a rebentação. Surpreendentemente, porém, o touro rompeu as ondas, lançando-se num trote ainda mais ágil do que aquele que usara nas areias fofas da praia. E assim se afastou cada vez mais da praia, enquanto Europa procurava manter-se agarrada aos chifres de seu sequestrador.
— Pare... ! Para onde está me levando? — perguntava Europa, enquanto o touro permanecia firme no seu galope, saltando sobre as ondas com a mesma destreza de um golfinho.
Vendo, porém, que o animal parecia determinado a conduzi-la para algum lugar, Europa começou a clamar por socorro, invocando a proteção de Netuno:
— O deus dos mares, veja em que aflição me encontro! — disse a moça, recebendo em seu corpo o vento e as ondas geladas.
De repente, porém, tendo já avançado imensamente pelo oceano, o touro voltou para trás a cabeça e começou a conversar com a assustada Europa.
— Nada tema, bela Europa! — disse o animal. — Eu sou Júpiter e a levo comigo para a ilha de Creta, onde casaremos e você será honrada com uma ilustre descendência.
Europa, mais calma, manteve-se agarrada aos chifres de seu futuro marido. Dentro em pouco chegaram ambos à ilha que o deus dos deuses anunciara.
Tão logo teve os pés postos sobre o chão outra vez, Europa viu o touro branco assumir a forma esplendorosa de Júpiter. Impaciente, o deus supremo carregou-a para dentro da ilha, enquanto Europa ainda tentava ensaiar alguma reação.
Das núpcias deste casal surgiriam três lindos filhos, dentre os quais Minos, futuro rei de Creta.
Readmore...

O Cão e o Cavalo - Voltaire

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários



Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é mesmo, como está escrito no Zenda, a lua-de-mel, e que o segundo é a lua-de-fel. Viu-se dentro em pouco obrigado a repudiar Azora, que se tornara dificílima de trato, e buscou refúgio no estudo da natureza.
"Ninguém pode ser mais feliz", dizia ele, "do que um filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus ante nossos olhos. É dono das verdades que descobre; alimenta e eleva a alma; vive tranqüilo; nada teme dos homens, e a sua extremosa mulher não lhe vem cortar o nariz".
Penetrado dessas idéias, retirou-se para uma casa de campo à margem do Eufrates.
Ali, não se preocupava ele em calcular quantas polegadas de água corriam por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se caía mais uma linha cúbica de chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não planejava fabricar seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de garrafa; mas dedicou-se principalmente ao estudo dos animais e das plantas, adquirindo em breve uma agudeza que lhe desvendava mil diferenças onde os outros não viam mais que uniformidade.
Ora, estando um dia a passear pelas proximidades de um bosque, acorreu-lhe ao encontro um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que houvessem perdido a maior preciosidade deste mundo.
- Jovem - disse-lhe o primeiro eunuco -, não viste o cão da rainha?
- É uma cadela, e não um cão - respondeu Zadig discretamente.
- Tens razão - tornou o primeiro eunuco.
- É caçadeira, e por sinal que muito pequena - acrescentou Zadig.
- Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.
- Viste-a então? - perguntou o primeiro eunuco, esbaforido.
- Não - respondeu Zadig -, nunca a vi na minha vida, nem nunca soube se a
rainha tinha ou não uma cadela.
 Ao mesmo tempo, por um comum capricho da sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia.
O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais inquietação do que o primeiro eunuco em busca da cadela.
O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se acaso não vira o cavalo do rei.
- É - respondeu Zadig - o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze denários.
- Que direção tomou ele? Onde está? - perguntou o monteiro-mor.
- Não o vi - respondeu Zadig -, nem nunca ouvi falar nele.
O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no perante a assembléia do grande Desterham, que o condenou ao Knut e a passar o resto da vida na Sibéria.
Mal se encerrara o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha visto.
Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou nos seguintes termos:
- Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, Ó vós que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o fulgor do diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante esta augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu. Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um cão pequeno. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância. "Eis aqui", considerei, "um cavalo que tem um galope perfeito." A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada. "Esse cavalo", disse eu comigo, "tem uma cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos." Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas, e concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça, e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários.

Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, embora vários magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro, ordenou o rei que lhe restituíssem as quatrocentas onças de ouro em que fora multado.
O escrivão, os meirinhos, os procuradores compareceram em grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação. Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser demasiado sábio, e jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que acaso houvesse testemunhado. Essa oportunidade não se fez esperar.
Um prisioneiro de Estado, que fugira, passou pelas janelas de sua casa. Zadig, interrogado, nada respondeu; mas provaram-lhe que ele olhara pela janela. Foi multado, por esse crime, em quinhentas onças de ouro, e ele agradeceu a indulgência dos juízes, segundo o costume de Babilônia.
"Como é lamentável, meu Deus," dizia ele consigo, "ir a gente passear num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que perigoso chegar à janela! E que difícil ser feliz nesta vida!"


Tradução de Mário Quintana
Readmore...

Jasão na ilha de Lemnos

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários



Jasão, o célebre herói grego, havia sido criado longe de casa pelo centauro Quíron.
Enquanto completava sua educação, seu tio Pélias assumira o seu lugar no trono da Tessália. Tendo retornado, já adulto, para assumir a sua condição de rei, foi induzido pelo perverso tio a empreender uma temerária expedição em busca do Velocino de Ouro — uma célebre relíquia que estava guardada no distante reino da Cólquida.
Tão logo tomou essa decisão, Jasão cercou-se de alguns dos mais valorosos heróis de seu tempo, tais como Hércules, Teseu, os irmãos Castor e Pólux, Meleagro e muitos outros.
O construtor do navio foi Argos, razão pela qual o navio foi batizado de Argo, e os seus tripulantes passaram a ser conhecidos por argonautas. O Argo era uma grande embarcação dotada de velas, tendo ao centro um mastro feito com um carvalho profético da floresta sagrada de Dodona, que predizia os bons ou os maus ventos aos navegantes.
Embora tivesse um sistema de mastreação, o navio também previa lugares para remadores, para as ocasiões em que faltassem os ventos. A construção do Argo, acompanhada de perto por Minerva, concluiu-se, afinal, e os seus tripulantes embarcaram, prontos para seguir viagem.
Mas, no momento da partida, o navio recusava-se a sair do lugar. Foi necessário que Orfeu, um dos tripulantes, tocasse sua lira.
Durante alguns minutos ouviram-se somente os sons maravilhosos da música misturados ao marulhar das ondas, até que finalmente o Argo, por si só, fez-se ao mar, sob os gritos de contentamento de toda a tripulação e da população que se despedia dos heróis. Durante vários dias navegaram eles pelos mares da Grécia, até chegar à ilha de Lemnos, onde pararam para descansar e reabastecer-se de víveres.
— Veja! — disse Tífis, o experiente piloto do Argo, a Jasão, que chefiava a expedição. — Há algumas mulheres ali para nos recepcionar.
De fato, a ilha estava repleta de mulheres, que se aproximaram alegremente do Argo, cobrindo os visitantes com flores e coroas de louros. Seus trajes eram curtos, e elas eram também bastante atraentes. Porém, estranhamente, não se via nenhum homem entre elas.
— Onde estão os homens deste lugar? — inquiriu Jasão àquela que parecia a líder do grupo.
— Estão todos descansando — respondeu a estranha mulher.
Os tripulantes do Argo já haviam quase todos desembarcado. Cada uma das mulheres se apoderara de um deles, de tal modo que só havia casais passeando por toda a ilha, o que desagradou um pouco a Jasão:
— Viemos aqui para um piquenique? — disse ele a Tífis, que, entretanto, também já estava de olho numa das belas mulheres.
Jasão, desvencilhando-se delas, foi conhecer melhor a ilha. Andou sozinho por tudo, até que descobriu o cemitério. Ali estavam os túmulos de centenas de homens, todos mortos mais ou menos à mesma época.
— Gosta de túmulos, senhor navegante? — indagou uma voz feminina às suas costas.
Jasão voltou-se para trás, surpreso com a presença inesperada.
— Parece que é este o lugar onde estão descansando todos os homens da ilha — disse Jasão, num tom irônico.
A mulher — a mesma que o recebera no desembarque — sorriu discretamente.
Diferente de antes, tinha agora apenas um fino véu a cobrir a parte inferior da sua cintura.
— Aqui eles não nos causam mais problemas — disse, erguendo os braços e fingindo que se espreguiçava.
— Diga, afinal, o que está acontecendo por aqui — ordenou Jasão, agarrando-a pelos ombros.
 — Ui... Não se zangue, estrangeiro... — disse a mulher, passando de leve o belo nariz aquilino sobre o peito robusto de Jasão.
— Deixe de asneiras e diga o que foi feito dos homens — ordenou novamente Jasão, sacudindo-a com força. Apesar do vigor do chefe dos argonautas, a mulher conseguiu se desvencilhar.
— Quer saber? Pois bem, nós os matamos!
 — Mataram... todos?
— Naturalmente! Eles nos traíam o tempo todo, e este foi o castigo — disse a mulher apontando para os túmulos, alegre e desafiadora. Em breves palavras ela descreveu, então, as humilhações que tiveram de suportar de seus maridos.
Não havia um único dia em que não tivessem notícia da traição de algum deles. Finalmente, revoltadas, decidiram pôr um fim em tudo, matando-os. E assim fizeram. No dia seguinte, não havia mais um único homem vivo em toda a ilha.
— Vênus, no entanto, irou-se conosco — continuou a mulher — e nos inspirou um ardente desejo por novas núpcias. Desde então, vivemos na ânsia de contrair novo casamento, o que, no entanto, jamais se realiza.
— Por que não?
— Bem, não possuímos um navio enorme como o seu, nem saberíamos fabricar outro parecido, para partir em busca de novos maridos — disse ela, aproximando-se com seu passo felino e sensual.
 Jasão, por alguns instantes, aceitou as carícias; porém, lembrando da sua missão, repeliu outra vez a estranha para longe.
Com uma gargalhada divertida, ela rodopiou, fazendo uma volta inteira sobre si mesma, enquanto erguia com as mãos os belos cabelos negros, recolhendo-os acima da cabeça. Seu rosto oval ficava, assim, inteiramente livre, mostrando o traçado perfeito de suas feições, sem nada em torno para ofuscar o brilho intenso do seu olhar. Era uma visão positivamente tentadora para um homem da juventude e da virilidade de Jasão, que há várias semanas não via senão água e homens ao seu redor. Mas ele soube resistir aos seus impulsos, pedindo mentalmente o auxílio de sua adorada Juno.
Dando as costas à nativa da ilha, retornava já para o Argo quando sentiu que a sedenta mulher agarrava-se às suas costas, como uma onça, e cravava os dentes em seu ombro.
Com um safanão, Jasão lançou-a ao solo. A mulher rolou pelo chão, com várias folhas secas coladas à pele. Jasão retornou ao navio. Ao chegar lá, porém, não encontrou ninguém. Furioso com o desleixo, saiu em busca do piloto e dos demais tripulantes.
Aos poucos foi encontrando um a um — ou antes, dois a dois, pois cada qual estava entregue aos braços de uma mulher, fazendo o que ele, Jasão, deixara de fazer. Por alguns momentos teve o desejo de retornar e completar o que deixara pela metade, mas outra vez o senso do dever o obrigou a refrear seus instintos.
De maneira rude pôs fim à folgança de seus tripulantes, separando um a um os amantes, o que pôs à prova pela primeira vez a força do seu braço. De fato, separar os casais revelou-se a tarefa mais difícil de quantas tivera posteriormente de enfrentar; mas, pouco a pouco, conseguiu reunir novamente todos os seus homens e levá-los de volta ao Argo.
Sob o pretexto de uma grave comunicação que tinha para lhes fazer, Jasão reuniu todos no convés do Argo. As mulheres, em terra, acenavam freneticamente, chamando de volta os homens, de forma que os argonautas passaram por uma prova semelhante à de Ulisses, diante do canto tentador das sereias. Enquanto os tripulantes aguardavam o começo da preleção, Jasão se afastou e cortou discretamente as amarras que prendiam o navio à terra, fazendo com que ele navegasse velozmente para longe da perigosa ilha.
Um desconhecido marinheiro, porém, pulou pela amurada afora e foi reunir-se às mulheres, em terra. Depois de um tempo, elas acabaram por descobrir que ele as traía, desrespeitando o rodízio estabelecido por aquelas ardentes e insaciáveis mulheres, e terminaram por matá-lo e acrescentar uma lápide a mais no cemitério.
Enquanto isso, Jasão conduzia o Argo em direção ao Velocino de Ouro. 
Readmore...

Eco e Narciso

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários


— Não agüento mais essa tagarela da Eco — segredou um dia a deusa dos bosques a uma das suas ninfas.
De fato, não era só Diana que não suportava mais o falatório da ninfa nenhuma das suas amigas podia mais vê-la pela frente sem fugir de sua língua incansável. Apesar de ser tão bela quanto a mais bela das ninfas, Eco tinha a mania incontrolável de falar pelos cotovelos.
 — Por que não se cala de vez em quando? — diziam-lhe as amigas.
— Homem algum suportará uma mulher que fale sem parar, mesmo sendo tão bela como você.
Mas Eco não se corrigia e prosseguia falando, até a exaustão. Um dia, porém, meteu-se com Juno, a esposa de Júpiter, e isto foi a sua ruína.
O deus dos deuses havia dado mais uma de suas escapadas, e Juno andava por perto, farejando o seu rastro. A própria Eco já gozara dos favores de Júpiter e prometera ocultar, a pedido do grande deus, os amores que ele agora mantinha com outra ninfa.
A deusa dos bosques não queria saber de fofocas e por isso fazia vistas grossas ao namoro. Afinal, meter-se com o deus supremo podia trazer-lhe problemas funestos. Certo dia, porém, Juno, tomada pela cólera, chegou quase a tempo de flagrar o esposo nos braços da tal ninfa.
Eco, após alertar o casal, dissera a Júpiter:
— Deixem comigo, eu a distrairei enquanto vocês escapam. E assim fez, realmente.
Tão logo Juno chegou, Eco apoderou-se dela com uma longa conversa, repleta de digressões e subterfúgios. Mas Juno, acostumada as desculpas esfarrapadas do marido, compreendeu logo a intenção da ninfa, que se achava mais esperta do que realmente era:
— Cale a boca! — disse, empurrando-a. — Pensa que me engana com sua conversa mole, sua atrevida?
Eco, assustada e com as mãos da furiosa deusa impressas nos ombros, calou-se. Mas era tarde demais.
— Porque pretendeu me fazer de boba a punirei, fazendo com que nunca mais possa dizer nada a não ser as últimas palavras que escutar — amaldiçoou Juno.
— ... as últimas palavras que escutar... —repetiu Eco, em cuja boca o feitiço já começava a atuar.
 — Ai está o que ganhou com seu atrevimento — disse Juno, vingada. — Adeus, idiota!
 —... adeus, idiota... -repetiu Eco e tapou rapidamente a boca com as duas mãos.
A notícia da maldição de Juno espalhou-se ligeiro por entre as ninfas:
— Bem-feito, sua ordinária — disse um dia uma rival a Eco.
— ... sua ordinária... — respondeu Eco, que ao menos podia, às vezes, responder à altura os desaforos que escutava.
Assim vagou a ninfa por entre os bosques durante muitos anos, até que um dia, caminhando pelas montanhas, encontrou Narciso, um jovem caçador que havia se extraviado de seus colegas.
Eco, ao colocar os olhos sobre a beleza do jovem, tomou-se imediatamente de amores por ele. Seguiu-o por um longo tempo imaginando qual o melhor meio de se aproximar dele, até que, ao pisar num galho solto, despertou finalmente a atenção do moço.
— O que foi isto? — perguntou o rapaz. — Há por aqui mais alguém?
— ... mais alguém... — repetiu Eco.
— Chegue mais perto — disse Narciso, sem ver ninguém.
— ... mais perto... — disse Eco e mostrou-se, finalmente, tendo antes o cuidado de ajeitar os cabelos. Decepcionado por ver que não era nenhum de seus companheiros, Narciso simplesmente perguntou:
— Diga-me, ninfa, como faço para sair daqui?
— ... sair daqui — replicou Eco, agoniada, pois a última coisa que desejava era que ele fosse embora.
Não podendo expressar com suas próprias palavras o seu amor, sem que antes o estranho o declarasse para ela, a ninfa desesperou-se e resolveu tomar uma medida drástica. Estendendo os braços, lançou-se para ele num frenético abraço. "Talvez ele entenda os meus sentimentos", pensou.
— O que está fazendo? — exclamou Narciso, atirando-a ao solo com um empurrão. — Não quero o seu amor!
— ... quero o seu amor... — repetiu a ninfa, vendo Narciso dar-lhe as costas e escapar rapidamente por uma vereda do bosque.
Mas em matéria de amor Eco era um desastre. Consciente de seu fracasso, a pobre ninfa recolheu-se para o interior de uma caverna no bosque. Ali, após enfadar durante longos anos as paredes da gruta com seus lamentos e lágrimas, viu seu corpo, aos poucos, dissolver-se na escuridão da caverna, até passar a fazer parte dela.
Da pobre ninfa só restou sua voz cava e profunda, a repetir sempre as últimas palavras que os passantes pronunciassem. Narciso prosseguiu com suas caçadas e a tratar com rudeza as ninfas que o perseguiam. O jovem caçador era pretensioso e arrogante, e mulher alguma parecia bastar à sua vaidade. Inclusive corria uma lenda que dizia que quando Narciso nasceu, um oráculo teria anunciado que ele poderia viver muito tempo, se jamais enxergasse a si próprio.
Seu pai, por via das dúvidas, quebrou todos os espelhos da casa. Temendo que o filho procurasse o próprio reflexo em alguma outra parte, adquiriu um espelho mágico, no qual Narciso via sua imagem sempre distorcida. Mesmo assim, sua beleza era tal que o arrogante rapaz não desgrudava do bendito espelho.
— Como sou lindo... — dizia, sempre que tinha o espelho nas mãos.
Um dia, porém, durante uma caçada mais agitada, o espelho que trazia sempre em seu bolso partiu-se. Juntando os cacos pôde ver apenas, com lágrimas nos olhos, o reflexo estilhaçado da própria beleza.
— Que lindos pedaços! — ainda se admirou, numa vaidade residual e fragmentária.
Abalado e cansado da caça, Narciso meteu-se para dentro das profundezas do bosque, próximo da gruta onde Eco vivia. Ah perto havia um pequeno lago. absolutamente deserto e silencioso. Sobre suas plácidas águas nem um único cisne deslizava.
As árvores, nas margens, inclinavam-se para longe do espelho cristalino de suas águas, como que tentando escapar de seu intenso reflexo. Narciso, chegando à margem, debruçou-se para tomar alguns goles I límpida água. Ao fazê-lo, percebeu que alguém o observava de dentro da água. Fascinado com a beleza daquele semblante inigualavelmente belo, Narciso teve de admitir que era mais perfeito ainda do que o seu próprio rosto.
— Quem é você, rosto adorável, que me contempla deste jeito? — perguntou à efígie encantadoramente bela, que o mirava apaixonadamente nos olhos.
O rosto lindo, porém, não lhe respondia, nem a esta nem às outras solicitações. Por várias vezes Narciso tentou, sem sucesso, seduzir aquele rosto magnífico. Um dia debruçou-se a ponto de encostar os lábios à liquefeita boca da imagem. Porém, ao fazê-lo, viu o belo estranho turvar-se, o que o encheu de pânico.
— Não, não fuja! — exclamou, assustado, descolando rapidamente os lábios da água, o que fez a imagem retomar, aos poucos, a sua anterior nitidez.
— Por que rejeita meus beijos? Pela primeira vez Narciso descobria o que era a dor do amor não-correspondido. Apesar do jovem erguer cada vez mais a voz, Eco, que ouvia tudo, excepcionalmente não lhe repetia as últimas palavras.
Vítima da crueldade de Narciso, gozava agora, secretamente, a sua vingança. O único ruído que escapava da caverna era um riso baixinho, que o vento produzia ao passar pelas fendas das pedras.
O jovem caçador foi perdendo a sua cor. Suas faces murchavam, seu cabelo crescia desmesuradamente — a ponto da franja cair-lhe pelos olhos — e seu nariz, perfeitamente aquilino, apresentava uma coriza continuamente a escorrer.
Mas nada disso era o bastante para fazer com que ele deixasse de amar aquele rosto magnificamente belo. Assim foi definhando lentamente o pobre Narciso, às margens do lago. Sem poder consumar o seu amor, acabou se transformando numa bela flor roxa de folhas brancas, sempre debruçada sobre o leito das águas.
Sua sombra infeliz embarcou no mesmo dia na barca de Caronte, atravessando o Estige rumo ao país das trevas. Mas nem o severo barqueiro pôde impedi-lo de, enquanto fazia a travessia, reclinar-se outra vez para mirar-se nas águas do rio infernal. 
Readmore...

A Máscara da Morte Escarlate - Edgar Allan Poe

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários



A “Morte Escarlate” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca ? a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a “Morte Escarlate”.

Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.

Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou descrever onde ela aconteceu. Eram sete ? um suíte imperial. Em muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas da suíte. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul ? e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada ? o quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. AS vidraças, ali, eram escarlates ? uma violenta cor de sangue.

Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.

Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.

Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.

Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia ? muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles ? os sonhos ? giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se ? duraram apenas um instante ? e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.

Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa ? e, finalmente, terror, horror e repulsa.

Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em veste mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue ? e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror escarlate.

Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.

– Quem ousa… ? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto ? quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!

O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.

O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura ? do púrpura para o verde ? do verde para o alaranjado ? e desse ainda para o branco ? e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para dete-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo ? e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.

E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo.
Readmore...

Baco aprisionado - Mitologia Romana

Posted by : Redação

Portal Noturno | Contos e Fábulas 0 comentários


Assim que Baco, filho de Júpiter e de Sêmele, nasceu da coxa do próprio pai, este chamou Mercúrio e ordenou-lhe que levasse o garoto para ser criado pelas ninfas do Nisa, um lugar ameno e paradisíaco.
— Lá ele estará em perfeita segurança — disse Júpiter, com alegria.
O pequeno Baco foi entregue às ninfas e também a um estranho e divertido ser chamado Sileno, filho do deus Pã, que se tornou o pai adotivo do futuro deus das vinhas.
Durante seus primeiros anos Baco participou, junto com Sileno — sempre bêbado e a cair de cima de seu inseparável burrico -, de toda espécie de brincadeiras.
Mas se o velho Sileno sabia ser brincalhão — e mesmo irresponsável, muitas vezes -, também sabia demonstrar que era dono de profundos conhecimentos, que sua aparência exótica e pouco respeitável podia fazer adivinhar.
— Deixe que falem — hic! — o que quiserem! — dizia Sileno, erguendo-se do são. amparado pelo jovem pupilo.
— Sileno sabe mais — hic! — que todos os sabichões da Terra...

Um dia o jovem Baco, vestido com seu manto púrpura, resolveu ir até a praia e lá adormeceu. Neste ínterim havia se aproximado da costa um grande navio — na verdade, um navio pirata — que andava à caça de nova presa.
 Um grupo de marinheiros desceu à terra para buscar água, e quando estes pisaram nas areias claras deram de cara com o belo rapaz adormecido. Sua tez delicada, seus lábios rubros e o todo mais de sua aparência denunciavam que seria filho, ao menos, de um senhor poderoso do lugar. Quem sabe, até, do próprio rei.
— Vamos levá-lo conosco — disse o mais rude daqueles homens.
— Poderemos pedir por ele um belo resgate.
Entretanto, o timoneiro, Acetes, tinha bom olho para as coisas divinas e percebeu logo que o garoto tinha algo de estranho.
— Deixemos o rapaz em seu lugar e vamos embora de uma vez — disse ele -, pois não pressagio nada de bom desta aventura.
— Virou Cassandra, agora? — disse Lícabas, o mais feroz e impiedoso dos piratas, com uma gargalhada assoprada que fez espirrar no rosto do pobre timoneiro uma chuva de seus perdigotos podres.
Acetes, conhecedor do estratagema do vilão, deixou para limpar depois o produto infecto da boca do asqueroso Lícabas, pois sabia perfeitamente -já vira, na verdade, por duas vezes acontecer o mesmo — que limpar o rosto diante dele era decretar a própria morte.
O garoto foi, então, embarcado, mas não à força, porque não opôs nenhuma resistência contra seus raptores. Estranhamente calmo, Baco só fazia observar docilmente aqueles homens sujos e cruéis.
"Verdadeiramente é um deus!", pensava o bom Acetes, observando o rapaz.
— Dirija direito este troço! — disse uma voz ao seu lado.
Era um dos piratas, que fora destacado pelo próprio Lícabas para vigiar o timoneiro.
Enquanto isto, Lícabas, que fora se tomando cada vez mais de antipatia pelo jovem deus, ordenou de repente a um de seus marujos:
— Amarrem esta mocinha! — disse, acentuando bem a última palavra.
E antes que dessem cumprimento a sua nefanda ordem, aproximou bem a horrível carranca do rosto delicado de Baco.
— Frisou hoje cedo os lindos caracóis, menina loira? — disse o sórdido Lícabas, arreganhando a horrível dentadura, na qual se podiam perceber três dentes acavalados a disputarem o mesmo espaço. Depois, tomando sua faca, enrolou um dos cachos loiros sobre o fio, como se fosse frisá- lo, mas os fios partiram-se.
— Ora, menina, que pena! — disse. — Eu só ia fazer mais um cachinho...
Um jato de perdigotos explodiu da boca de Lícabas, como a onda esbatida que o vento impele, no inverno, sobre a costa pedregosa — mas, curiosamente, nenhuma das gotas apodrecidas foi alojar-se no rosto do jovem Baco.
— Cadê a corda, sardinhas regurgitadas pelo gato? — perguntou Lícabas, que mudava de espírito como o céu muda durante o verão abrasante.
Um boçal bem mandado surgiu carregando um rolo áspero de cordas.
— Deixa ver — disse Lícabas, esfregando um pedaço sobre a parte interna do braço.
— Não serve; traga outra! Um rolo de fios de cobre espetado surgiu, nos braços do mesmo homem. Depois de testá-lo, o vil Lícabas aprovou.
-Amarrem-no, já! Três homens fortes tomaram da corda e enrolaram Baco num abraço odioso.
Mas, coisa estranha!, tão logo terminavam de fazer os nós, eles se desmanchavam como por encanto, e a corda caía aos pés de todos, sem provocar o menor arranhão na vítima.
— Imbecis! — disse Lícabas. — Tratem de fazer um nó decente ou mandarei dar um nó nas tripas de cada um de vocês! Trinta nós foram feitos, e os mesmos trinta nós desfeitos, até que o sol caísse.
De repente, porém, o navio parou em meio ao mar. Parou, simplesmente. Ninguém sabia explicar o motivo.
— O vento cessou de todo — explicou Acetes ao capitão, temendo uma reação brutal.
— Então dêem nos remos! — ordenou Lícabas, que sabia dividir o instante das punições com o instante da ação. Os remos foram lançados com estrídulo à água, mas na mesma hora viram-se enrolados por um emaranhado de algas. Ao mesmo tempo começou a subir pelo mastro a folhagem espessa das vinhas, que se espalhou por todo o convés.
— Vejam, está chovendo! — disse um dos marinheiros, estendendo a mão.
Mas não era uma chuva normal, e sim uma chuva de vinho, que num instante cobriu todos de vermelho. Alguns, é verdade, gostaram da peça e abriam suas bocas para receber o produto da grande nuvem vermelha pairada acima do barco.
Mas quando Lícabas, que não era homem para graças, enterrou uma espada dentro da garganta do primeiro, a brincadeira acabouse ali. Baco, misteriosamente, tinha agora ramos da vinha pendurados atrás das orelhas e portava em sua mão um grande tirso, com a ponta encimada por uma enorme pinha.
Como quem rege um concerto de flautas, Baco agitava o seu cetro, com um sorriso alegre estampado no rosto — o sorriso da embriaguez divina! O convés encheu-se, também, de animais silvícolas, enormes e assustadores. Enormes felinos espalhavam-se por todo o barco — tigres, linces e um jaguar que parecia divertir-se imensamente com aquilo tudo -, o que tomou os marinheiros de pavor.
— Verdadeiramente, este rapaz é um deus ou um demônio! — exclamou um deles, lançando-se borda afora. Muitos outros o seguiram, mas tão logo alcançavam a água, viam seus corpos mudarem abruptamente para algo inumano.
Lícabas, o último que relutava, ainda, em abandonar o barco, de repente começou a perder o equilíbrio.
— Mas o que é isso? Maldição! — disse, enquanto observava seus pés unindo-se por uma estranha membrana, quase transparente. Suas pernas também foram perdendo o pêlo espesso que as recobria e tornando-se lisas como a pele de um peixe. Num último instante, antes de enlouquecer, o sórdido Lícabas chegou a achar graça daquela estranha metamorfose que se operava em si próprio.
— Estarei enlouquecendo, então? — exclamou, dando sua última gargalhada. Mas não foi de sua boca que saiu, desta vez, o infame jato, mas de uma protuberância instalada bem no alto de sua cabeça.
Lícabas, bem como todos os seus homens — à exceção do bom Acetes -, haviam se transformado em golfinhos, que tubarões ferozes perseguiam em alucinante disparada.
— Sou Baco, deus do vinho e da alegria! — disse o jovem, com os olhos refulgentes, ao timoneiro.
— Leve-me de volta e instaure um templo, em meu nome, em todas as terras por onde andar, para que se possam celebrar neles os meus sagrados ritos.
Assim se fez, e desde então Baco obrou ainda muitos e mil outros prodígios.
Readmore...

Mais Populares

Copyright © Portal Noturno | Portal Noturno