CHARLES PERRAULT (1628-1703 | França)
Um volume publicado anonimamente, Contes de Ma Mere l'Oie ("Histórias da Mamãe Gansa"), mas de autoria de um sisudo advogado da arquiteto da época do Rei-Sol chamado Charles Perrault, tem embalado a infância do mundo todo há pelo menos três séculos. Quem não ouviu histórias como O Pequeno Polegar, A Gata Borralheira, O Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas e outras tantas? Muitos especialistas em literatura infantil já observaram a violência implícita nestas historietas aparentemente ingênuas. Mas o que talvez nos surpreenda é descobrir num desses contos, exatamente neste O Barba-Azul, um inegável pioneirismo numa vertente do policial contemporâneo: a do serial-killer. (No século XX, este conto "infantil" ainda dialogava com a literatura contemporânea: Anatole France reviu o "caso criminal" deste estranho personagem em As Sete Esposas do Barba-Azul. Na sua versão, "o herói" é reabilitado, por ter sido vítima inocente de suas sete esposas.)
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis requintados e carruagens douradas; mas por infelicidade esse homem tinha a barba azul: detalhe que o fazia tão feio e tão terrível que não havia mulher nem moça que não corresse ao vê-lo. Uma dama de alta linhagem, sua vizinha, era mãe de duas filhas absolutamente bonitas. O homem pediu uma delas em casamento, deixando que a vontade materna fizesse a escolha.
Nenhuma das duas o aceitava, e uma passava a indicação para a outra, pois nenhuma queria aceitar um homem de barba azul. Não lhes era agradável tampouco a circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse que fim levaram.
Para conhecer as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a mãe e três ou quatro amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma de suas casas de campo, onde passaram nada menos que oito dias. E foi então só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e comidinhas: ninguém dormia, passavam a noite pregando peças umas nas outras; afinal, tudo transcorreu às mil maravilhas, e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul assim, e que era homem de muita dignidade.
Assim que voltaram para a cidade, o casamento foi realizado. No fim de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma viagem de três semanas, no mínimo, à província, a fim de resolver um negócio importante; pedia-lhe que se divertisse à vontade durante a sua ausência mandasse buscar suas amigas, levasse-as para o campo, se quisesse, comesse do bom e do melhor.
- Aqui estão as chaves dos guarda-móveis - disse ele -; aqui as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos dias especiais; aqui as dos meus cofres-fortes onde estão meu ouro e minha prata, as do cofre das minhas jóias, e aqui a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete que fica no extremo da galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde quiser; mas nesse pequeno gabinete, eu a proíbo de entrar, e a proíbo de tal maneira que, se acontecer de você chegar a abri-lo, não há nada que você não possa esperar da minha ira.
Ela prometeu cumprir à risca tudo aquilo que lhe tinha sido ordenado: e ele, depois de beijá-Ia, tomou sua carruagem e partiu. As vizinhas e as amigas sequer esperaram que as mandassem buscar para ir à residência da jovem esposa, tão ansiosas estavam para ver todas as riquezas da casa, pois não haviam ousado ir até lá quando o marido estava presente por causa da sua barba azul que lhes causava medo. E ei-Ias sem maior perda de tempo a percorrer os quartos, os gabinetes, os vestiários, cada um mais bonito do que o outro. Subiram depois aos guarda-móveis, onde não se cansaram de admirar a quantidade e a beleza das tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, das mesas e dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornamentos, uns de vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já se poderiam ter visto. Não se cansavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava para abrir o gabinete do porão. Sentiu-se tão levada pela curiosidade que, sem pensar que seria uma indelicadeza deixar as vizinhas sozinhas, desceu até o porão por uma escada estreita e oculta, e com tamanha precipitação que por duas ou três vezes achou que ia quebrar o pescoço.
Ao chegar à porta do gabinete, deteve-se, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por ter sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a conseguiu vencer: segurou a pequena chave e, trêmula, abriu a porta do gabinete. Nada viu, a princípio, pois as janelas estavam fechadas; segundos depois começou a perceber que o assoalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, corpos presos ao longo das paredes. (Eram todas as mulheres que Barba-Azul desposara e que, uma a uma, havia estrangulado.)
Pensou que ia morrer de susto, e a chave do gabinete caiu-lhe da mão assim que a retirara da fechadura. Depois de recobrar um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu para o quarto a fim de se refazer; não o conseguia porém, tão grande lhe era o tumulto. Ao perceber que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue teimava em não desaparecer; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedra-pomes; em vão: o sangue permanecia, pois a chave era de fada e não havia meio de limpá-Ia totalmente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro. Barba-Azul retornou de viagem logo nessa mesma noite, e disse haver recebido, no caminho, cartas com a notícia de que o negócio que o fizera partir acabara de se realizar, com vantagens para ele. A mulher fez o que pôde para se mostrar encantada com o inesperado retorno.
No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou; mas sua mão tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem maiores esforços o que havia acontecido.
- Por que é que a chave do gabinete não está junto com as outras? perguntou-lhe.
- Devo tê-Ia deixado lá em cima, na minha mesa.
- Quero a chave aqui e agora, já, já!
Depois de muitas delongas, a mulher teve de entregá-Ia. Barba-Azul examinou-a e disse:
- Por que este sangue na chave?
- Não sei nada disso - respondeu a pobre criatura, mais pálida do que a morte.
- Você não sabe de nada - continuou ele -, mas eu sei muito bem: você tentou entrar no gabinete! Está certo, minha senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado das que lá encontrou...
Ela se jogou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos os sinais de um arrependimento sincero por não haver sido obediente. Bela e desesperada como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba Azul tinha o coração mais duro do que um rochedo:
- Tem de morrer, minha senhora, e logo. -
Visto que tenho de morrer - respondeu ela, fitando-o com os olhos banhados de lágrimas -, dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus.
- Dou-lhe meio quarto de hora - replicou Barba-Azul - e nem um momento a mais.
Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe:
- Minha irmã Ana (era este o seu nome), eu te suplico, sobe ao alto da torre para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que viriam me ver hoje e, se os vir, faz-lhes sinal para que se apressem.
A irmã Ana subiu para a torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando:
- Ana, minha irmã, não estás vendo ninguém?
E a irmã Ana lhe respondia:
- Não vejo nada a não ser o sol que brilha e a erva que verdeja.
Enquanto isso, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força:
- Desce depressa ou eu subirei aí.
- Mais um momentinho, por favor - respondia-lhe a mulher.
E, em seguida, baixinho:
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém?
E a irmã Ana respondia:
- Não vejo nada a não ser o sol que brilha e a erva que verdeja.
- Desce depressa - bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí.
- Já vou - respondeu a mulher. E depois:
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém?
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém?
- Só vejo - respondeu a irmã Ana - uma grossa poeira que vem da banda de lá.
- São meus irmãos?
- São meus irmãos?
- Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros.
- Não vais descer? - bradava Barba-Azul.
- Mais um momento - respondia a mulher. E depois:
- Ana, minha irmã Ana, não vês ninguém?
- Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm do lado de cá, mas ainda estão muito longe... Louvado seja Deus! - exclamou pouco depois.
- São meus irmãos; estou fazendo sinal para eles, tanto quanto me é possível, para que se apressem. Barba-Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu.
A pobre mulher desceu e jogou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos.
- Isto de nada adianta - disse Barba-Azul.
- Você precisa morrer.
Em seguida, segurou-a com uma das mãos pelos cabelos e ergueu, com a outra, o cutelo no ar, a ponto de cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher.
- Não, não - disse ele -, encomenda bem tua alma a Deus.
E, erguendo mais o braço... Naquele momento, bateram à porta com tanta força que Barba-Azul parou subitamente. Abriram, e logo se viram entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram na direção de Barba-Azul. Ele percebeu que eram os irmãos da sua esposa, um deles, dragão e outro, mosqueteiro, e fugiu sem maior demora, para se salvar; mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa.
Atravessaram-no a fio de espada e o deixaram morto. A pobre dama estava tão morta quanto o marido, sem maiores forças para levantar-se e beijar os irmãos. Revelou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão pela qual sua mulher tornou-se dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento da irmã Ana com um jovem fidalgo que a amava há muito; outra parte na compra do posto de capitão para os dois irmãos; e o resto no casamento dela própria com um homem mui distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba-Azul.