A humanidade conheceu várias épocas, desde a sua criação — épocas que a história batizou de Idades. Na primeira delas, a Idade do Ouro, todos eram felizes. Apesar do nome, ninguém, então, pensava em ouro.
A velhice não existia, tampouco as doenças. Reinava uma primavera permanente, os alimentos brotavam da terra por si sós, e a inocência imperava por tudo. Depois dessa idade feliz seguiu-se a Idade da Prata, na qual a eterna primavera deu lugar às quatro estações e a terra passou a ter de ser cultivada para oferecer os seus frutos.
A decadência prosseguiu com a Idade do Cobre, na qual começaram as disputas entre os homens, até que se chegou, finalmente, à Idade do Ferro, quando o crime fez a sua entrada triunfal entre os mortais. A paz abandonou definitivamente a Terra, que ficou entregue à cobiça dos homens.
As coisas estavam nesse estado quando Júpiter, deus dos deuses, observando o caos que se instalara, decidiu pôr um fim nele.
Enfurecido, chamou um dia à corte o seu irmão Netuno.
— Meu irmão, creio que é chegada a hora de castigarmos estes mortais insanos, que transformaram o paraíso terrestre num horrível lugar de dor.
— Estou de acordo, meu poderoso irmão — respondeu Netuno.
— O que você sugere? Júpiter ordenou ao irmão que fendesse a terra com um golpe de seu poderoso tridente.
Dali se abririam as comportas das águas dos mares, que, uma vez liberadas, inundariam o mundo todo. Netuno, retirando-se, foi fazer exatamente o que Júpiter lhe dissera. Chegou a um vale seco e pedregoso e empunhou o tridente, erguendo-o para o alto.
Em seguida, o fez descer à terra com tamanha força que o enterrou quase inteiro no solo. Uma rachadura começou a se espalhar do ponto onde se abatera o golpe, espraiando-se para todos os lados, como se fossem as raízes de uma árvore invisível.
Daquelas imensas fissuras começou a brotar a água submersa, que corria por debaixo da terra em imensos e borbulhantes veios. Netuno foi por todas as partes golpeando o solo, até que em menos de um dia a terra começou a desaparecer, engolida pela água.
Diante dos olhos deliciados de Júpiter — que a tudo observava do alto -desfilaram envoltos em ondas de incrível ferocidade gafanhotos, moscas, ratos, esquilos, zebras, leões, elefantes, casas, templos e palácios. Em meio a tudo isso, passavam homens, agarrados em qualquer coisa que sobrenadasse na violência das águas.
A maioria das pessoas, no entanto, passavam já mortas. As aves, não encontrando mais nenhum lugar seco onde repousar, deixavam-se cair às águas, renunciando à luta pela vida. No entanto, Júpiter resolveu poupar da destruição um homem e sua esposa, que considerava os únicos justos sobre a face da Terra. Deucalião e Pirra eram seu nomes. Ao verem que tudo naufragava sob as ondas impetuosas, Deucalião abraçou-se à esposa, e foram ambos refugiar-se num velho barquinho.
As águas rapidamente cobriram tudo, enquanto suspendiam a frágil embarcação até o topo do monte Parnaso, o último lugar seco da Terra. Netuno, vendo sua tarefa cumprida, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade homens, metade peixes.
— Vão, agora, e devolvam tudo à normalidade — disse, com autoridade.
Um exército de tritões partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram soar as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta aos leitos dos rios e dos oceanos.
Rapidamente as águas foram baixando, deixando à mostra outra vez as árvores, as casas, os templos, os palácios e uma multidão de homens e animais mortos. Parecia que era a própria Terra que ressurgia de dentro das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada. O único casal de sobreviventes vagou, assim, pela Terra, revendo antigos lugares que antes fervilhavam de pessoas, mas que agora eram habitados somente pelo silêncio.
De mãos dadas penetraram num grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de uma velha comédia, pouco antes de morrer afogada. No centro do palco, Deucalião enxergou o cadáver de um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara, toda dobrada e enferrujada. Curioso, retirou o dourado e sorridente adereço, mas por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria, a seu modo, o grande e compulsório sorriso da Morte.
Pirra virou o rosto para o lado, com um ar compungido.
— Vamos, Deucalião. Aqui só há desolação e morte!
Viram também templos desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda permaneciam em pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para ocupar o lugar dos vivos. Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas vazias. Percorreram cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pela morte.
— Ninguém sobreviveu à cólera de Júpiter, a não ser nós! — disse Deucalião à esposa.
— Oh! — gemia a mulher. — Que faremos vivos, num mundo de mortos?
— Procuremos nos consolar, minha querida Pirra! — exclamou Deucalião, que intimamente estava grato a Júpiter por haver poupado de sua ira a esposa, o seu único consolo e razão de viver.
Ela, de braços cruzados ao peito, chorava em silêncio.
— Deucalião, devemos procurar o templo de Têmis e lá implorarmos piedade — disse Pirra, tornando-se outra vez resoluta.
De comum acordo seguiram até chegar ao templo da deusa da Justiça. Do teto pendia ainda um musgo lamacento, que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas de água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar. Deucalião e Pirra, comovidos, lançaram-se aos pés da estátua da deusa:
-Poderosa Têmis, que nos observa, com clemência, do alto! — disse Pirra. — Não queremos habitar um mundo sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para isso?
Uma voz suave saiu da boca cerrada da estátua:
— Meus amados, se quiserem ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer. Após cumprirem meus ritos, quero que saiam do templo — disse a deusa. — Depois, cubram seus rostos, alarguem seus cintos e atirem para trás de si os ossos de sua avó! — completou, de modo enigmático.
Pirra, não entendendo o que a deusa desejava, começou a chorar.
— Ó deusa, como farei tal coisa? — exclamou. — E mesmo que reencontre os ossos de minha avó, como poderia cometer tamanha blasfêmia?
Deucalião, no entanto, tomando o rosto de Pirra nas mãos, a acalmou:
— Calma, querida! Acho que compreendi o sentido das palavras da deusa! É muito simples — esclareceu Deucalião. — A deusa está se referindo não aos ossos da sua avó, mas à Terra, nossa avó comum! Ora, os ossos de nossa avó não são senão as pedras da Terra!
Eufóricos, os dois velaram os rostos e saíram do templo. Juntaram todas as pedras que puderam encontrar, e Deucalião lançou atrás de si a primeira. Tão logo ela caiu, eles escutaram o ruído da pedra se esfarelando e algo surgindo às suas costas.
Era um homem! Sim, um homem que surgira dos restos da pedra. Pirra, extasiada, velou também o rosto e lançou para trás uma pedra, e surgiu dali uma linda mulher.
E assim foram ambos jogando pedras para trás. Daquelas lançadas por Deucalião surgiam homens, e das que Pirra lançava surgiam mulheres, os novos habitantes da Terra.
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