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Berenice - Edgar Allan Poe

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Desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente misturadas. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris! Como é que, da beleza, derivei eu um exemplo de feiúra? Da aliança da paz, um símile de tristeza? Mas é que, assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, igualmente, na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que existem agora têm sua origem nos êxtases que podiam ter existido

Meu nome de batismo é Egeu; o de minha família não o mencionarei. E, no entanto, não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada uma raça de visionários. Em muitos pormenores notáveis, no caráter da mansão familiar, nos afrescos do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas da sala de armas, porém mais especialmente na galeria de pinturas antigas, no estilo da biblioteca, e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente evidência a garantir minha assertiva.

As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que eu não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto? Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer. Há, porém, uma lembrança de forma aérea, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais embora tristes; uma lembrança que jamais será apagada; uma reminiscência parecida a uma sombra, vaga, variável, indefinida, instável; e tão parecida a uma sombra, também, que me vejo na impossibilidade de livrar-me dela enquanto a luz de minha razão existir.

Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia mas não era, o nada, para logo cair nas mesmas regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e da erudição, não é de estranhar que tenha eu lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que, com o correr dos anos, e tendo o apogeu da maturidade me encontrado ainda na mansão de meus pais; é maravilhoso que a inércia tenha tombado sobre as fontes da minha vida; é maravilhoso como total inversão se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, mas, na realidade, a própria existência em si, completa e unicamente.

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia, ela, ágil, graciosa e exuberante de energia; ela, entregue aos passeios pelas encostas da colina, eu, aos estudos no claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação, ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho ou no vôo saliente das horas de asas lutulentas. Berenice! – invoco-lhe o nome – Berenice! – e das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações ao som da invocação! Ah! bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos velhos dias de sua jovialidade e alegria! Oh! deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh! sílfide entre arbustos de Arnheim! Oh! náiade entre as suas fontes! E depois. . . depois tudo é mistério e horror, uma história que não deveria ser contada. Uma doença, uma fatal doença, soprou, como o simum, sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre ela invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade! Ah! o destruidor veio e se foi! E a vítima. . . onde estava ela? Não a conhecia. . . ou não mais a conhecia como Berenice!

Entre a numerosa série de males, acarretados por aquele fatal e primeiro que ocasionou uma revolução de tão horrível espécie no ser moral e físico de minha prima, pode-se mencionar como o mais aflitivo e obstinado em sua natureza, uma espécie de epilepsia, que, não raro, terminava em transe cataléptico, transe muito semelhante à morte efetiva e da qual despertava ela quase sempre duma maneira assustadoramente subitânea. Entrementes, minha própria doença – pois me fora dito que eu não poderia dar-lhe outro nome – minha própria doença aumentou e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, e a cada hora e momento crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania, se devo assim chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito denominadas pela ciência metafísica “faculdades da atenção “. É mais que provável não me entenderem, mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa INTENSIDADE DE ATENÇÃO com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se aplicavam e absorviam na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.

Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção voltada para alguma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico; ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão, na contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite inteira olhando a chama imóvel duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, à força da repetição freqüente, cessasse de representar ao espírito a menor idéia, qualquer que fosse; perder toda a noção de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida – tais eram os mais comuns e menos perniciosos caprichos provocados por um estado de minhas faculdades mentais, não, de fato, absolutamente sem paralelo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.

Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos, em sua própria natureza triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão ruminativa comum a toda a humanidade e, mais especialmente, do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou um a exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela. Naquele caso, o sonhador ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde imperceptivelmente de vista esse objeto através duma imensidade de deduções, e sugestões dele provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repleto de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum, ou causa primeira de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por força de minha visão doentia, uma importância irreal e refratada. Nenhuma ou poucas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao objeto primitivo, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e, ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista, atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado, que era a característica principal da doença. Em uma palavra, as faculdades da mente, mais particularmente exercitadas em mim, eram, como já disse antes, as da atenção ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.

Naquela época, os meus livros, se não contribuíam efetivamente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perce-ber-se, pela sua natureza imaginativa e inconseqüente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio ‘De AMPLITUDINE BEATI REGNI DEI;” da grande obra de Santo Agostinho, “A CIDADE DE DEUS”; do “De CARNE CHRISTI”, de Tertuliano, no qual a paradoxal sentença: MORTUS EST DEI FILIUS; CREDIBILE EST QUIA INEPTUM EST: ET SEPULTUS RESUR-REXIT; CERTUM EST QUIA IMPOSSIBiLE EST”, absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.

Dessa forma, minha razão perturbada, no seu equilíbrio, por coisas simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo, de que fala Ptolomeu Hefestião, que resistia inabalável aos ataques da violência humana e ao furioso ataque das águas e dos ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado moral de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldades em explicar, contudo tal não se deu absolutamente. Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me mortificava realmente, e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, e amargamente, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificações tão estranhas. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, e eram as mesmas que teriam ocorrido, em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, minha desordem mental preocupava-se com as menos importantes, porém mais chocantes mudanças, operadas na constituição física de Berenice, na estranha e verdadeiramente espantosa alteração de sua personalidade.

De modo algum, jamais a amara durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia, e no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, terreno, mas como a abstração de tal ser; não como coisa para admirar, mas para analisar; não como um objeto de amor, mas como o tema da mais abstrusa, embora inconstante, especulação. E agora. . . agora eu estremecia na sua presença e empalidecia à sua aproximação; embora lamentando amargamente sua decadência, e sua desolada condição, lembrei-me de que ela me amava desde há muito e num momento fatal, falei-lhe em casamento.

Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de inverno, de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, sentei-me no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho, mas, erguendo a vista, divisei Berenice, em pé à minha frente.

Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinzentas roupagens que lhe caiam em torno do corpo, que lhe deram aquele contorno indeciso e vacilante? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu, por forma alguma, podia emitir uma só sílaba. Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma e, recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu rosto.

A fronte era alta e muito pálida e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora dum amarelo vivo, discordando, pelo seu caráter fantástico, da melancolia reinante em suas feições. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas, e desviei involuntariamente a vista de sua fixidez vítrea para contemplar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus nunca os tivesse visto, ou que, tendo-os visto, tivesse morrido!

O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia abandonado o aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia saído, ai de mim! e não queria sair, o espectro branco e horrível de seus dentes. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem um matiz em seu esmalte, nem uma falha nas suas bordas, que aquele breve tempo de seu sorriso não me houvesse gravado na memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes. Os dentes!. . – Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda a parte, visíveis, palpáveis, diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria de minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Os múltiplos objetos do mundo exterior não me despertavam outro pensamento que não fosse o daqueles dentes, Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação. Eles. Somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvia-os em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação. Refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em imaginação, faculdades de sentimento e sensação e, mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade de expressão moral. Dizia-se, com razão, de Mademoiselle de Sallé; que tous ses pas êtaient des sentiments” e de Berenice, com mais séria razão acreditava “que toutes ses dents étaient des idées”. Idées! Ah! esse foi o pensamento absurdo que me destruiu! Des idées! ah! eis porque eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia restituir-me a paz, e devolver-me a razão.

E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas, demoraram, foram embora. E o dia raiou mais uma vez. E os nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensavam em torno de mim. E eu ainda continuava sentado, imóvel, naquele quarto solitário, ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o fantasma dos dentes, mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras mutáveis do aposento. Afinal, explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara, uma criada, toda em lágrimas, que me disse que Berenice não mais. . – vivia! Fora tomada de um ataque epiléptico pela manhã e agora ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro estavam terminados.

Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi-me, com repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era um quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.

Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo ?- Não vi moverem-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta fora realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas mas, deixando-as cair de novo, desceram elas sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita comunhão com a defunta.

Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia mal e imaginava que um odor deletério se exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças para mover-me, meus joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo, contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido, no caixão aberto.

Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror, ergui lentamente os olhos para ver o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e, por entre sua moldura melancólica, os dentes de Berenice, brancos luzentes, terríveis, me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente do leito e sem pronunciar uma palavra, como louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte.

Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me que, havia pouco, despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr-do-sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, do que ocorrera durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque impreciso, terror mais terrível porque ambíguo. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombrias, medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Interrogava-me em voz alta e os ecos do aposento me respondiam “Que era?”

Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e, perto dela, estava uma caixinha. Não era de aspecto digno de nota e eu freqüentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos, por fim, caíram sobre as páginas abertas de um livro e sobre uma sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares, porém simples, do poeta Ebn Zaiat: “Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas’. Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?

Uma leve pancada soou na porta da biblioteca e, pálido como o habitante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou em voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem, que perturbara o silêncio da noite. -da acorrência dos moradores da casa. – – de uma busca do lugar de onde viera o som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao murmurar a respeito de um túmulo violado — . de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas ainda respirante, ainda pal-pitante, ainda vivo!

Apontou para minhas roupas; estavam sujas de barro e de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; havia, gravadas nela, sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede, que contemplei por alguns minutos: era uma pá.

Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que sobre ela jazia. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas, pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.
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O rapto de Ganimedes - Mitologia Grega

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Júpiter tinha como animal de estimação uma linda águia. Esta ave, branca e imensa, era a mesma que levara ao deus dos deuses o néctar, durante sua perigosa infância, na ilha de Creta, quando vivia escondido do pai, Saturno, que comia os próprios filhos.
Júpiter, agora adulto e na condição suprema de deus dos deuses, casara-se com Juno e dela tivera uma filha chamada Hebe. Ela estava encarregada de servir o néctar aos deuses, durante os seus ociosos e felizes encontros. Hebe, considerada a encarnação da juventude, parecia não se incomodar com a humilhante tarefa, e era sempre sorrindo que derramava nas taças dos deuses o néctar que trazia em sua jarra.
Mas um dia, Hebe, um tanto descuidada, resvalou em pleno salão do Olimpo e caiu com a jarra. Seu pai, Júpiter, desgostou-se com o lamentável desempenho e demitiu-a no ato. A partir daquele instante, a corte celestial não tinha mais quem servisse os deuses, problema que, num lugar onde os problemas eram poucos, revestia-se de relevante importância.
— Júpiter, querido — disse um dia Juno ao seu esposo. — Se você não quer mais que nossa desastrada filha reassuma suas antigas funções, trate de arrumar alguém para tomar o seu lugar.
— Você poderia exercê-las perfeitamente, querida Juno — disse Júpiter.
Juno nem se deu ao trabalho de responder, simplesmente deu-lhe as costas, seguida de seu pavão de estimação, que parecia também ofendido.
Júpiter, reclinando-se em seu trono, pensou um pouco. Depois, levantando-se, foi até a janela espiar a Terra, sua distração principal. Observar os mortais era também um bom calmante, pois, ao ver as loucuras e confusões nas quais eles viviam metidos, as apreensões do grande deus diminuíam.

No exato instante em que Júpiter deitou para baixo o seu olhar, ele caiu sobre um belo rapaz que passeava em meio a várias ovelhas, por um prado ameno e recoberto de flores. Era Ganimedes, filho do rei de Tróada. Apesar de sua alta condição, era pastor, e neste instante guiava o seu rebanho.
O jovem trazia à cabeça um barrete frígio, tendo jogado displicentemente às costas um pequeno manto. Sua compleição física destacava-se em meio à brancura das ovelhas, o que logo atraiu Júpiter.
— Ora, vejam... Este belo rapaz daria aqui um ótimo serviçal! — disse o deus dos deuses, alisando as barbas. Assim, sem pensar em mais nada, o rei dos deuses decidiu simplesmente raptá-lo, levando o jovem para morar no Olimpo com os deuses.
Num instante, Júpiter fez um sinal para sua águia, que estava sempre por perto.
— Minha querida — disse Júpiter à ave -, desça já à Terra e traga-me aquele belo rapaz!
A ave estendeu suas imensas asas e arremessou-se ao abismo, como uma flecha recoberta de penas. Enquanto isto, Ganimedes, alheio a tudo, continuava a pastorear o seu rebanho. Como o sol estivesse um tanto forte, o rapaz decidiu sentar-se um pouco sobre uma pedra, à sombra de uma grande árvore. Puxou uma flauta rústica para distrair-se e acalmar as ovelhas.
Mas por entre as nuvens já pairava a imensa águia, atenta. Do alto observava o alvo rebanho, como outra nuvem que estivesse pousada ao chão. Quando percebeu que o inocente jovem estava inteiramente entregue à sua distração, destacou-se das nuvens e arremeteu com suas grandes garras expostas.
Ganimedes, erguendo um pouco o olhar, percebeu que uma grande sombra ocultava por instantes a luz do sol. Antes que entendesse direito o que era aquilo, sentiu em seus ombros a pressão dolorida das garras da águia.
O jovem não teve tempo de ver o que o feria. Sentiu apenas que se elevava cada vez mais pelos ares, enquanto observava, atônito, as suas ovelhas diminuírem lá embaixo, até se tornarem somente um pontinho branco no imenso tapete verde do campo. O vento frio arrebatara o seu manto ao mesmo tempo em que deixava em selvagem desalinho a sua cabeleira revolta. Mas à medida que subia, o calor do sol esquentava Ganimedes.
Quando ficava quente demais, a ave agitava com mais força as suas asas, para aliviá-lo do calor.
— O que quer de mim? — gritava o jovem à sua raptora.
A águia, entretanto, permanecia em majestoso silêncio, ascendendo cada vez mais com sua presa para além das nuvens. Assim foram subindo, até que Ganimedes, por entre as brumas das regiões superiores, viu surgir afinal o palácio majestoso de Júpiter.
Em instantes o jovem, mudo de espanto, foi depositado diante do trono do pai dos deuses.
— Meu caro jovem! — disse Júpiter, com um ar de boas-vindas. — Saiba que a partir de hoje você passará a fazer parte de minha corte celestial.
A esposa de Júpiter, que também aguardava o jovem, mostrava-se bastante surpreendida com sua beleza, admitindo que seu marido fizera uma bela escolha.
— O que querem de mim? — exclamou Ganimedes, que não sabia se ficava alegre diante dessa notícia ou se a lamentava.
Vênus, a bela deusa do amor, que também estava por ali, adiantou-se:
— Permita, Júpiter, que eu converse um pouco com ele — disse, entusiasmada. — Estou certa de que nos entenderemos às mil maravilhas.
Júpiter assentiu, enquanto Vênus, envolvendo com seu braço a cintura do jovem, conduziu-o até um recanto afastado nos jardins perfumados do Olimpo.
Ganimedes, apesar de assustado com tudo, ficou fascinado com a beleza daquela deusa, que o tomava, assim, em seus braços, com a intimidade de uma velha amiga.
— Você teve a honra de ser escolhido dentre os mortais para ser o novo servidor de Júpiter e de todos os deuses — disse-lhe Vênus, fazendo uma pausa na caminhada, com os olhos fitos em Ganimedes. O jovem podia sentir o calor da pele da deusa envolvê-lo como uma veste imaginária.
 — A partir de agora você será um de nós, tendo também o dom divino da imortalidade. Agora, meu querido, vamos tratar destas pequenas feridas, caso contrário você não poderá vestir tão cedo o seu novo e elegante traje — completou a deusa.
Vênus levou, então, o seu hóspede para um dos aposentos do palácio de Júpiter, onde soube consolá-lo, de maneira bastante eficiente, das suas saudades terrenas. Enquanto isso, Júpiter, percebendo que o pai do jovem raptado ficara inconsolável com a perda do filho, decidiu recompensá-lo.
Já era noite estrelada quando o mensageiro de Júpiter apresentou-se diante do infeliz rei e da sua esposa. Ambos mostravam-se inconformados com a perda do filho.
— Rei poderoso! — disse-lhe Mercúrio, num tom solene. — Venho aqui, em nome de Júpiter, para lhe comunicar que seu filho é agora um deus.
— Ganimedes imortal...! — exclamou o pobre rei, sem saber o que dizer.
Sua esposa, que preferia seu filho humano, mas ao seu lado, perguntou, aflita:
— Mas nunca mais veremos nosso amado Ganimedes?
— Não, nunca mais — respondeu Mercúrio -, a não ser no céu, onde poderão enxergá-lo em noites claras como esta, sob a forma do zodíaco de Aquário.
Em compensação, Júpiter lhes manda estes dois magníficos presentes, que acalmarão em seus corações a aflição provocada por essa dolorosa perda. Mercúrio, com ar triunfal, descobriu, então, diante dos olhos do velho casal, um magnífico cepo de ouro, que esplendeu majestosamente na escuridão da noite.
Depois fez surgir uma maravilhosa parelha de cavalos que, lançando-se pelo prado, pôs-se a correr ao redor deles, numa cavalgada mais veloz do que a do próprio vento.
O rei e a rainha, no entanto, não viram nenhuma dessas maravilhas: abraçados, tinham os olhos postos no céu, à procura do filho. 
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Dafne e Apolo - Mitologia Grega

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Apolo era considerado um ás da pontaria, desde que abatera a serpente Tifão, a fera que perseguira sua mãe, Latona, quando o deus era ainda criança. Um dia Apolo caminhava pela estrada que margeava um grande bosque, quando se encontrou com Cupido.
O jovem deus, filho de Vênus, estava treinando a sua pontaria, solitariamente, em cima de uma pedra. Sem ser notado, Apolo parou para observar a postura do jovem. Com um dos pés escorado sobre uma saliência da rocha, o deus do amor procurava ganhar o máximo de equilíbrio para assestar com perfeição a pontaria.
Seu braço esticado, que segurava o arco, era firme sem ser demasiado musculoso; o outro, encolhido, segurando a flecha, tinha o cotovelo apontado para suas costelas, enrijecendo o seu bíceps; todo o conjunto, desde o porte até a dignidade dos gestos, demonstrava grande elegância, e mesmo os músculos das pernas pareciam distendidos, como a corda presa às duas extremidades do arco.
 Apolo não conseguiu deixar de sentir uma certa inveja diante da graça do seu involuntário rival. Não podendo mais se conter, saiu das sombras e revelou ao deus do amor a sua presença.
— Olá, jovem arqueiro. Treinando novamente a sua pontaria?
— disse Apolo, pondo um indisfarçado tom de ironia na voz.
— Sim — disse Cupido, sem virar o rosto para o outro.
— Quer treinar um pouco, também? Apolo, imaginando que o outro debochava dele, reagiu com inesperada rudeza:
— Ora, moleque, e quem vai me ensinar alguma coisa? Você?
Cupido, guardando suas setas, já se preparava para se retirar, quando Apolo o provocou novamente:
— Vamos, treine, treine sempre, garotinho, e um dia chegará a meus pés! — disse o deus solar, com um riso aberto de triunfo.
Cupido, no entanto, revoltado com a presunção do deus, sacou de sua aljava duas flechas: uma de ouro e outra de chumbo. Seu plano era acertar em cheio o peito de Apolo, com a primeira flecha.
— Vamos provar agora, um pouco, da minha má pontaria! — disse o deus do amor, mirando o coração de Apolo.
Num segundo a seta partiu, assobiando ao vento e indo cravar-se no alvo com perfeita exatidão. Apolo, sem perceber o que atingira seu peito — pois as flechas do deus do amor tornam-se invisíveis assim que atingem as vítimas —, sentou-se ao solo, abatido por um langor nunca antes sentido. Mas Cupido ainda não estava satisfeito.
Por isso, enxergando Dafne, a filha do rio que se banhava no rio Peneu, mirou em seu coração a segunda flecha, a da ponta de chumbo, e a disparou. Enquanto a primeira seta provocava o amor, esta, endereçada a Dafne, provocava a repulsa. Assim, Cupido dava início à sua vingança.
— Divirta-se, agora! — disse Cupido, sumindo-se no céu com seu arco.
Apolo, após recuperar suas forças, ergueu-se e entrou no bosque, como que impelido por alguma atração irresistível. Tão logo atravessou as primeiras árvores, seus olhos caíram sobre a bela ninfa, que secava os cabelos, torcendo-os delicadamente com as mãos.
— Se são belos assim em desalinho, como não serão quando arrumados? -perguntou ele, já bobo de amor.
A ninfa, escutando a voz, voltou-se para o lugar de onde ela partira. Assustada ao ver que aquele homem de louros cabelos a observava atentamente, juntou suas vestes e saiu correndo, mata adentro. Apolo, num salto, ergueu-se também.
— Espere, maravilhosa ninfa, quero falar com você.
Nunca em sua vida Dafne havia sentido tamanha repulsa por alguém como sentia pelo majestoso deus solar. O pior e mais feio dos faunos não lhe parecia no momento mais odioso do que aquele homem que a perseguia com fúria.
— Afaste-se de mim! — gritava Dafne, enojada.
Apolo, acostumado a ser perseguido por todas as mulheres, via-se agora repelido de forma tão definitiva.
— Por que foge assim de mim, ninfa encantadora? — dizia, sem compreender.
Sem saber como agir diante de uma situação tão inusitada, o desnorteado deus pôs-se a falar de si, da sua beleza tão elogiada por todos, de seus dotes, suas glórias, seus tributos e as infinitas vantagens que Dafne teria em juntar-se a ele, o mais cobiçado dos deuses.
Mas o mais belo dos deuses desconhecia um pouco a mentalidade feminina, senão teria falado mais da bela deusa em vez de falar tanto de si próprio. Ao perceber, porém, que a corrida desenfreada da jovem acabaria por deixá-la extenuada, o deus gritou:
— Espere, diminua o seu passo que diminuirei também o meu!
A ninfa, reconhecendo a gentileza de seu perseguidor, diminuiu um pouco o ritmo. Apolo, no entanto, que diante da diminuição da distância vira aumentar os encantos da sua amada, acelerou involuntariamente o seu passo, renovando o terror na amedrontada Dafne.
 — Mas que canalha! — indignou-se a ninfa, tomando novo impulso para a corrida, mas já estava exausta e não era páreo para Apolo, o deus do astro que jamais se cansa de percorrer o Universo, todos os dias.
Sentindo um peso nas pernas, Dafne voltou o rosto aterrado para trás e percebeu que as mãos do deus quase tocavam os seus fios de cabelo. Contornando a mata, retornou outra vez à margem do rio Peneu, clamando pela ajuda do velho rio:
— Socorro, Peneu! Faça com que eu perca de vez esta beleza funesta, já que ela é a causa de todos os meus sofrimentos! — disse, disposta a entregar à natureza todos os seus dons em troca da liberdade. Dafne, a alguns passos do rio, deu um salto, pretendendo atingir a água. mas seu tornozelo foi agarrado pela mão firme de Apolo, fazendo com que seu corpo caísse sobre a grama verde e fofa das margens. Um suspiro forte escapou de seus lábios entreabertos, com o impacto da queda.
Ainda tentou rastejar em direção à água, porém sem sucesso. Apolo, cobrindo-a de beijos, recusava-se a largá-la.
Finalmente, com um suspiro de alívio, a ninfa sentiu que seu corpo começava a se recobrir com uma casca áspera e grossa, enquanto seus cabelos viravam folhas esverdeadas. Descolando finalmente seus pés da boca do agressor, Dafne sentiu que eles se enterravam na terra, transformando-se em sólidas e profundas raízes. Apolo, ao ver que sua amada estava para sempre convertida numa árvore — um loureiro -, ainda tentou extrair do resto de seu antigo corpo um pouco do seu calor, abraçando-se ao tronco e procurando-lhe os lábios. Não encontrou a suavidade do antigo hálito da ninfa, mas apenas o odor discreto da resina.
Apolo, desconsolado, despediu-se levando consigo, como lembrança, algumas folhas, com as quais enfeitou sua lira. Enfeitou também a fronte com estas mesmas folhas, em homenagem a Dafne — a mulher que nunca foi nem jamais será sua. 
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Pobre povo cruel - Arkady and Boris Strugatsky

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O Rei sentou-se nu. Tal como um tolo pedinte de rua, sentou-se com as costas contra a parede fria. Tremia de olhos fechados e tentava ouvir, mas tudo era silêncio.
Acordara à meia-noite de um pesadelo e imediatamente entendera que estava acabado. Sons ofegantes detrás da porta da suíte real, passos, bater de metais e resmungos bêbados de Sua Alteza, o Tio Buht: 'DEIXEM-ME PASSAR! SAIAM DO MEU CAMINHO, PRO INFERNO COM ISSO...

Molhado de gélido suor, rolara para fora da cama, seguindo por um estreito corredor secundário e então pela passagem subterrânea até o templo. Algo gemera sob seus pés descalços, pisara em ratazanas, mas na hora não se importou, somente agora, sentado contra a parede, lembrou-se de tudo; da escuridão, das paredes escorregadias e a dor de ter batido a cabeça contra as portas do templo, e de seu próprio insuportável urro de dor.
Eles não poderiam entrar ali, pensou. Ninguém poderia entrar no templo.
Somente por ordem do Rei. Mas o Rei não mais ordenava. Riu-se histérico.
Oh não, o Rei não ordena mais! Vagarosamente abriu os olhos e viu suas pernas azuis e lisas com os joelhos feridos. Ainda estava vivo, pensou. Viverei, por que ninguém pode entrar aqui. Tudo no templo era azulado devido a luz fria das lanternas, longos tubos brilhantes espalhados sob o teto. No centro do templo, Deus em seu trono gigantesco e pesado, com olhos vazios. O Rei o olhava pelo canto do olho. Escória, pensou, que verme miserável, pegar o mestiço e os cães, para me assolar... deu-se conta de não lembrar-se muito bem do maldito.Tão mirrado e imprestável... mas tudo bem, eles iriam pagar por isso.
Por tudo, Sua Grandeza Tio Buht. Durante o reino de seu pai, você se sentou quieto, bebendo calado, com medo de ser notado, pois sabia que o Rei Prostyaga não esqueceria sua desprezível traição… Grande era meu pai, o Rei pensou com habitual inveja.
Você seria grande também se seus conselheiros fossem anjos em carne e osso.
Todos sabiam, todos tinham visto, seus rostos medonhos e brancos como leite, seus trajes feitos de tal forma que ninguém sabia se estavam nus ou não. E suas flechas ardentes como raios do céu, que fizeram com que os inimigos fugissem, ainda que disparassem por sobre suas cabeças, metade da horda correu com medo daquelas flechas.

Sua Alteza, Tio Buht, sussurrou certa vez, bêbado, que tais flechas poderiam ser usadas por qualquer um, as tais armas dos anjos, seria bom se tirássemos deles. E ele disse então - bêbado - que se era bom, por que então não obtê-las, por que não... mais tarde após aquela conversa à mesa, um anjo tombou dentro do canal, provavelmente por acidente. Junto dele acharam o corpo de um dos guardas pessoais do Tio. Foi um feito maléfico, terrível, e era conveniente que o povo não se importasse muito com os anjos, eles os temiam, mas este temor também não era total, já que os anjos eram alegres e cordiais.
Apenas seus olhos eram assustadores. Pequenos e brilhantes e não paravam de se mover irrequietos, não eram humanos. Sendo assim o povo os evitava, o Rei Prostyaga dava liberdade a eles, o que era vergonhoso de se lembrar...contudo antes do Golpe o pai, diziam, era um apaziguador. Dito isso, com minhas próprias mãos, sequei as lágrimas dos olhos.
Lembro que ele costumava se sentar à noite na torre de cristal e eu podia me abrigar ao seu lado, era quente e confortável...os anjos cantavam dos quartos, tão tranqüilo e em harmonia, o pai começava a acompanhá-los - ele conhecia a língua dos anjos - e tudo era vasto e amplo, sem ninguém por perto... não como hoje, com guardas em cada canto, pois não havia motivo para isso.
O Rei lamentou. Sim, ele fora um bom pai e que não devia ter morrido. Não devia morrer enquanto seu filho estava vivo...o filho agora é Rei também,...mas Prostyaga não durou muito.
Tenho mais de cinqüenta anos e ele ainda era mais novo do que eu... parecia que os anjos tinham pedido a Deus por suas vidas. Disseram que os confinaram no quarto do Rei, eles tinham armas, mas não se defenderam. Antes de morrer, disseram, os anjos jogaram as armas pela janela e elas se queimaram com uma chama azul e nem cinza sobrou.
E Prostyaga, disseram, chorou e ficou bêbado pela primeira vez em seu reinado, e olhou para mim, disseram, com amor, e eu acreditei…
O Rei secou as lágrimas do rosto e abraçou as pernas. E daí? Temos que saber os limites e abdicar, como acontece o tempo todo por ai. Apenas por uma vez conversei com meu Tio.
– Sua Alteza.Prostyaga - ele disse - não envelhecerá'.
– Sim - eu disse a ele - mas o que podemos fazer, os anjos pedem por suas vidas.
O Tio então zombou e disse:
– Anjos - disse - não mais cantarão suas canções por aqui.
E eu retruquei:
– É verdade, agora podemos negociar com eles, não somente como humanos.

O Tio então olhou para mim sóbrio e imediatamente se foi.. e eu realmente não tinha dito nada demais...apenas palavras vazias sem significado. Uma semana depois Prostyaga morreu de um ataque do coração.E dai? Era sua vez. Ele parecia jovem, mas tinha na realidade mais de cem anos.
Todos morremos um dia. O Rei se assustou e cobriu-se sem jeito.
O Santo Padre Agar entrara no templo. Os Irmãos de fé vinham na sua frente, trazendo-o pelas mãos. Ele não olhou para o Rei, foi direto na direção de Deus e ajoelhou-se diante de seu posto.
Alto e corcunda, com longos cabelos brancos e sujos.
O Rei o olhou fixo e disse divertido: 'É o seu fim! Você procurou por isso, e não sou como Prostyaga, você vai se sufocar em seus intestinos, porco bêbado...
Agar, com a voz profunda falou:
– Deus! O Rei deseja falar contigo! Perdoa-o e ouça-o.
O silêncio caiu na sala, ninguém ousava respirar.
O Rei ponderou: Quando a grande enchente veio e a terra se abriu, Prostyaga pediu a Deus por socorro, e Deus veio dos céus numa bola de fogo no mesmo dia e naquela noite a terra acalmou-se e a enchente se foi. Isso significava que poderia acontecer hoje novamente.
– Você está perdido Tio, você não se cuidou direito. Agora ninguém vai te ajudar…
Agar se endireitou. Os irmãos que o amparavam pularam, virando de costas para Deus e cobrindo suas cabeças com os braços. O Rei viu como Agar estendeu as mãos e as colocou no peito de Deus. Os olhos de Deus se abriram. O Rei ficou boquiaberto de medo pois os olhos de Deus eram grandes e diferentes, um era verde e o outro branco brilhante e luminoso.
Podia ouvir agora a respiração de Deus, pesada e estalante, como se doente.
Agar recuou.
- Fale - sussurrou Agar.
O Rei ficou de quatro e começou a engatinhar até o altar. Ele não sabia o que dizer ou como. E não sabia como começar e sequer se deveria contar toda a verdade.
Deus respirava pesadamente ofegante e o Rei passou a choramingar com medo.
– Sou o filho de Prostyaga - disse o Rei em desespero, amassando o rosto contra a pedra fria
 – Prostyaga morreu. Peço sua proteção contra os conspiradores. Prostyaga cometeu erros. Ele não sabia o que estava fazendo. Eu consertei tudo; acalmei o povo, me tornei poderoso e inatingível como você, e montei um exército...o traidor Buht está atrapalhando meus planos para conquistar o mundo. Ele quer me matar! Me ajude!
E baixou a cabeça até o chão.
Deus, sem piscar, estava olhando para ele em verde e branco.
Deus estava silencioso.
– Ajude-me - repetiu o Rei
- Ajude-me, ajude-me!
De repente ele pensou se estava fazendo algo errado, pois Deus estava indiferente e inoportunamente lembrou-se que eles tinham dito que seu pai, Prostyaga não morrera de um ataque do coração, mas fora morto ali, no templo, quando os assassinos entraram sem pedir permissão.
– Ajude-me! ele gritou desesperado. Tenho medo de morrer! Ajude-me! Ajude-me!
Ele deitou-se sobre as pedras do chão, mordendo as mãos com terror insuportável.

O Deus de Olhos Diferentes falou com a voz rouca.
– Seu verme velhaco - disse Tolya.
Ernst estava calado observando. Na tela, através da estática, era possível ver uma forma humana escura que jazia deitada ao chão.
– Quando eu penso - disse Tolya de novo - que se não fosse por ele, Alan e Derek estariam vivos, tenho vontade de fazer alguma coisa.
Ernst balançou os ombros e foi até a mesa.
– Eu sempre penso - continuou Tolya - por que Derek não atirou ? Ele podia ter liquidado todos…
– Ele não podia, disse Ernst.
– Por que não?
– Já tentou atirar em um ser humano? Tolya fez uma careta, mas não disse nada.
– Pois então - disse Ernst - Tente imaginar. É quase repugnante. Um uivo triste era ouvido saindo pelos alto-falantes.
– Ajude-me, ajude-me, tenho medo, ajude-me', o mecanismo-tradutor continuava a transmitir.
– Pobre povo cruel...– lamentou Tolya.
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Deucalião e Pirra - Mitologia Grega

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A humanidade conheceu várias épocas, desde a sua criação — épocas que a história batizou de Idades. Na primeira delas, a Idade do Ouro, todos eram felizes. Apesar do nome, ninguém, então, pensava em ouro.
A velhice não existia, tampouco as doenças. Reinava uma primavera permanente, os alimentos brotavam da terra por si sós, e a inocência imperava por tudo. Depois dessa idade feliz seguiu-se a Idade da Prata, na qual a eterna primavera deu lugar às quatro estações e a terra passou a ter de ser cultivada para oferecer os seus frutos.
A decadência prosseguiu com a Idade do Cobre, na qual começaram as disputas entre os homens, até que se chegou, finalmente, à Idade do Ferro, quando o crime fez a sua entrada triunfal entre os mortais. A paz abandonou definitivamente a Terra, que ficou entregue à cobiça dos homens.
As coisas estavam nesse estado quando Júpiter, deus dos deuses, observando o caos que se instalara, decidiu pôr um fim nele.
Enfurecido, chamou um dia à corte o seu irmão Netuno.
— Meu irmão, creio que é chegada a hora de castigarmos estes mortais insanos, que transformaram o paraíso terrestre num horrível lugar de dor.
— Estou de acordo, meu poderoso irmão — respondeu Netuno.
— O que você sugere? Júpiter ordenou ao irmão que fendesse a terra com um golpe de seu poderoso tridente.
Dali se abririam as comportas das águas dos mares, que, uma vez liberadas, inundariam o mundo todo. Netuno, retirando-se, foi fazer exatamente o que Júpiter lhe dissera. Chegou a um vale seco e pedregoso e empunhou o tridente, erguendo-o para o alto.
Em seguida, o fez descer à terra com tamanha força que o enterrou quase inteiro no solo. Uma rachadura começou a se espalhar do ponto onde se abatera o golpe, espraiando-se para todos os lados, como se fossem as raízes de uma árvore invisível.
Daquelas imensas fissuras começou a brotar a água submersa, que corria por debaixo da terra em imensos e borbulhantes veios. Netuno foi por todas as partes golpeando o solo, até que em menos de um dia a terra começou a desaparecer, engolida pela água.
Diante dos olhos deliciados de Júpiter — que a tudo observava do alto -desfilaram envoltos em ondas de incrível ferocidade gafanhotos, moscas, ratos, esquilos, zebras, leões, elefantes, casas, templos e palácios. Em meio a tudo isso, passavam homens, agarrados em qualquer coisa que sobrenadasse na violência das águas.
A maioria das pessoas, no entanto, passavam já mortas. As aves, não encontrando mais nenhum lugar seco onde repousar, deixavam-se cair às águas, renunciando à luta pela vida. No entanto, Júpiter resolveu poupar da destruição um homem e sua esposa, que considerava os únicos justos sobre a face da Terra. Deucalião e Pirra eram seu nomes. Ao verem que tudo naufragava sob as ondas impetuosas, Deucalião abraçou-se à esposa, e foram ambos refugiar-se num velho barquinho.
As águas rapidamente cobriram tudo, enquanto suspendiam a frágil embarcação até o topo do monte Parnaso, o último lugar seco da Terra. Netuno, vendo sua tarefa cumprida, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade homens, metade peixes.
— Vão, agora, e devolvam tudo à normalidade — disse, com autoridade.
Um exército de tritões partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram soar as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta aos leitos dos rios e dos oceanos.
Rapidamente as águas foram baixando, deixando à mostra outra vez as árvores, as casas, os templos, os palácios e uma multidão de homens e animais mortos. Parecia que era a própria Terra que ressurgia de dentro das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada. O único casal de sobreviventes vagou, assim, pela Terra, revendo antigos lugares que antes fervilhavam de pessoas, mas que agora eram habitados somente pelo silêncio.
De mãos dadas penetraram num grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de uma velha comédia, pouco antes de morrer afogada. No centro do palco, Deucalião enxergou o cadáver de um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara, toda dobrada e enferrujada. Curioso, retirou o dourado e sorridente adereço, mas por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria, a seu modo, o grande e compulsório sorriso da Morte.
Pirra virou o rosto para o lado, com um ar compungido.
— Vamos, Deucalião. Aqui só há desolação e morte!
Viram também templos desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda permaneciam em pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para ocupar o lugar dos vivos. Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas vazias. Percorreram cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pela morte.
— Ninguém sobreviveu à cólera de Júpiter, a não ser nós! — disse Deucalião à esposa.
— Oh! — gemia a mulher. — Que faremos vivos, num mundo de mortos?
— Procuremos nos consolar, minha querida Pirra! — exclamou Deucalião, que intimamente estava grato a Júpiter por haver poupado de sua ira a esposa, o seu único consolo e razão de viver.
 Ela, de braços cruzados ao peito, chorava em silêncio.
— Deucalião, devemos procurar o templo de Têmis e lá implorarmos piedade — disse Pirra, tornando-se outra vez resoluta.
De comum acordo seguiram até chegar ao templo da deusa da Justiça. Do teto pendia ainda um musgo lamacento, que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas de água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar. Deucalião e Pirra, comovidos, lançaram-se aos pés da estátua da deusa:
-Poderosa Têmis, que nos observa, com clemência, do alto! — disse Pirra. — Não queremos habitar um mundo sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para isso?
Uma voz suave saiu da boca cerrada da estátua:
— Meus amados, se quiserem ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer. Após cumprirem meus ritos, quero que saiam do templo — disse a deusa. — Depois, cubram seus rostos, alarguem seus cintos e atirem para trás de si os ossos de sua avó! — completou, de modo enigmático.
Pirra, não entendendo o que a deusa desejava, começou a chorar.
— Ó deusa, como farei tal coisa? — exclamou. — E mesmo que reencontre os ossos de minha avó, como poderia cometer tamanha blasfêmia?
Deucalião, no entanto, tomando o rosto de Pirra nas mãos, a acalmou:
— Calma, querida! Acho que compreendi o sentido das palavras da deusa! É muito simples — esclareceu Deucalião. — A deusa está se referindo não aos ossos da sua avó, mas à Terra, nossa avó comum! Ora, os ossos de nossa avó não são senão as pedras da Terra!
Eufóricos, os dois velaram os rostos e saíram do templo. Juntaram todas as pedras que puderam encontrar, e Deucalião lançou atrás de si a primeira. Tão logo ela caiu, eles escutaram o ruído da pedra se esfarelando e algo surgindo às suas costas.
Era um homem! Sim, um homem que surgira dos restos da pedra. Pirra, extasiada, velou também o rosto e lançou para trás uma pedra, e surgiu dali uma linda mulher.
E assim foram ambos jogando pedras para trás. Daquelas lançadas por Deucalião surgiam homens, e das que Pirra lançava surgiam mulheres, os novos habitantes da Terra. 
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O toque de Midas - Mitologia Grega

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— Alguém viu por aí aquele bêbado do Sileno? — perguntou Baco, sem receber resposta. Sileno, preceptor de Baco, não passava um dia sem aprontar alguma. Sempre embriagado e montado no seu burrico, vagava o dia inteiro, sem rumo certo, até ser encontrado dias depois, caído pelos caminhos, a dormir o pesado sono dos bêbados.
Desta vez não foi diferente. Tonto pela bebida, Sileno enveredara por uma estrada diferente, esfalfando seu burrico, até chegar ao reino do poderoso Midas. Internando-se num bosque, encontrara logo uma árvore e ajeitara-se sob a sua sombra, para pôr o sono em dia. Alguns camponeses que passavam por ali logo o reconheceram.
— Vejam, aquele não é Sileno, pai adotivo de Baco? — disse um deles.
Os outros, parando em frente ao dorminhoco, logo o reconheceram como tal. Os camponeses colocaram-no ainda adormecido sob as ancas do seu burro e levaram-no até o palácio de Midas.
— Ora, se não é Sileno, pai de meu grande amigo Baco! — exclamou Midas, ao ver entrar em seu salão o velho bêbado, que já andava por suas próprias pernas.
Midas gostava do alarido divertido que o velho gorducho promovia durante suas bebedeiras; por isto, resolveu fazer dele seu hóspede por algum tempo. Durante dez dias o velho bêbado alegrou a corte do rei, até que no décimo primeiro dia Midas levou-o de volta ao seu filho adotivo.
Baco, após dar uma descompostura no velho, agradeceu a Midas pelo grande favor que lhe prestara.
— Pode escolher, caro amigo, a recompensa que quiser — disse-lhe Baco, num ímpeto de generosidade.
— Qualquer coisa?... — perguntou Midas, surpreso. — Qualquer coisa mesmo?
— Sim, claro, vamos lá, diga o que quer! — exclamou Baco, disposto a tudo.
Midas parou um pouco para pensar. Milhares de coisas valiosas passavam por sua cabeça — coroas, troféus, estátuas, jóias -, sempre douradas e resplandecentes.
De repente, teve uma brilhante idéia. Ou antes, uma dourada idéia:
— Quero que tudo o que eu toque vire ouro.
Baco, que havia prometido atender ao pedido, qualquer que fosse, tentou, no entanto, tirar essa ideia da cabeça de Midas:
 — Meu amigo, acho que esta não é uma boa escolha — disse o deus, pousando amigavelmente a mão sobre o ombro do visitante. Este, no entanto, surdo a qualquer razão, queria a todo custo que seu amigo cumprisse a promessa.
— Você disse qualquer coisa.
— Quer isto mesmo?
— Sim, claro, vamos! — disse Midas, impacientando-se.
Baco cedeu finalmente e, por meio de um passe mágico de mãos, conferiu ao angustiado Midas o poder de transformar tudo o que tocasse em puríssimo ouro.
— Obrigado mesmo! — exclamou Midas, aproximando-se para dar um abraço em Baco.
O deus, no entanto, esquivou-se num movimento rápido e afastou-se dando-lhe adeus. Para testar o seu novo poder, Midas estendeu uma das mãos para um galho seco que pendia de uma velha árvore.
— Vamos ver... — murmurou, numa expectativa ansiosa.
Nem bem tocou no galho, no entanto, a casca começou a se esfarelar, surgindo por baixo uma cor dourada.
 — Funciona! funciona! — gritava pelas veredas do bosque o rei, sapateando de euforia.
— Serei o rei mais rico do mundo! Seguiu assim, saltitando e tocando em tudo o que via: tocou numa pedra e ela virou uma grande pepita de ouro; arrancou uma maçã de uma árvore e ela ganhou a cor dourada e pesou na suas mãos; achou uma velha fivela de metal e viu-a logo resplandecer diante de seus olhos.
Midas chegou em casa com os bolsos abarrotados de insetos, galhinhos. folhas e pedras de ouro — pois não quis deixá-las espalhadas pelo caminho, incerto ainda da duração do seu novo e maravilhoso poder.
— A rainha já chegou? — perguntou, assim que entrou no palácio.
Os criados responderam que não, ela ainda não havia chegado. "Onde andará essa mulher?", pensou, impaciente para lhe contar a novidade. Midas sentou-se à mesa, para almoçar. Já passava de meio-dia, e a caminhada havia aberto seu apetite.
Logo as baixelas de prata foram surgindo nos braços dos escravos. Um criado destapou a primeira, da qual se levantou uma nuvem branca e cheirosa. Os olhos do faminto Midas lutavam por devassar a nuvem e descobrir o que o aguardava.
— Pernil de carneiro com amêndoas e tâmaras! — exclamou, deliciado.
Parecia até que o cozinheiro havia adivinhado que aquela era uma data especial. Outros pratos foram sendo colocados na mesa, cada qual mais apetitoso que o outro. Midas pegou o garfo — um magnífico talher de prata que se converteu imediatamente em puríssimo ouro. Tão logo levou a primeira porção à boca, percebeu que mastigava as mais duras amêndoas da sua vida. Levou a mão à boca, dela retirou alguns pedacinhos e viu que tinha entre os dedos três ou quatro pecinhas de ouro, minúsculas como pingentes.
Midas colocou o ouro de lado e decidiu atacar o assado. Como fosse guloso, arrancou um pedaço do pernil com as próprias mãos e meteu-lhe os dentes com todo o gosto. No mesmo instante, sentiu na boca a mesma sensação de haver mordido uma chapa de ferro. O seu canino estalou e Midas esfregou-o com o dedo, gemendo de dor.
No mesmo instante, não só este dente como todos os demais transformaram-se em luzentes dentes dourados. Lançando longe o pernil, Midas avistou um pêssego numa bandeja. Agoniado, agarrou-o num ímpeto voraz, apenas para perceber que tinha agora um pêssego de ouro maciço entre os dedos, lindo de ver, mas impossível de comer.
Neste instante a bela rainha entrou pela porta do salão. Estava linda como sempre, os cabelos molhados caídos de modo displicente sobre os ombros.
— Querida, tenho uma grande notícia! — disse Midas, lançando-se feliz em direção à esposa. — Você está diante do rei mais rico e poderoso da Terra! -exclamou, vermelho de satisfação.
— O que houve com os seus dentes? — perguntou a rainha, ofuscada pelo nono sorriso do rei.
 — Vamos, me dê logo um abraço! — pediu o rei, eufórico.
A rainha, sem desconfiar de nada, deixou que o rei a envolvesse nos braços.
— Ricos, ricos, eternamente ricos! — gritava ele. De repente, porém, sentiu que os membros da esposa enrijeciam-se. O rosto dela, colado ao seu, tornara-se repentinamente gelado, enquanto seus ombros haviam ficado dourados.
— Não! — gritou Midas, dando-se conta outra vez da sua horrível situação. — Rainha querida, o que houve com você?
Ali estava sua esposa, transformada numa estátua imóvel e dourada. Durante alguns minutos Midas esteve também paralisado, só que de espanto. Um ruído sibilino acordou-o de seu horrendo devaneio. Sobre a mesa, Mimeus, seu gato de estimação, o encarava, arregalando os grandes olhos de pupilas horizontais. Cercado de alimentos dourados, inúteis para ele, o gato parecia cobrar com seu miado estridente uma solução, o que encheu o coração de ouro do rei de um ódio assassino.
— Gato maldito, desapareça já da minha frente! — disse Midas, pulando na direção do gato, decidido a estrangulá-lo. Errou, no entanto, o alvo, conseguindo agarrar apenas a cauda de Mimeus, que se transformou instantaneamente em ouro.
O gato voltou-se para trás e, ao perceber aquela surpreendente transformação no seu traseiro, arreganhou os dentes e sumiu porta afora. Mas a porta já se abria outra vez: era o cunhado do rei. "Vem pedir dinheiro outra vez, o desgraçado!", pensou Midas com fúria. "Não adiantou fazê-lo ministro!"
— Quanto é desta vez? — rugiu, indo direto ao assunto. O cunhado, aliviado por poder dispensar os preâmbulos, respondeu com um sorriso mais amarelo que o do dono da casa:
— Bem, quinhentas moedas está bom...
— Venha cá — disse Midas. — Antes, me dê um abraço. E agarrou o infeliz pelos ombros, enquanto aguardava o resultado.
— Pronto, agora vai chegar para o resto da vida — rugiu, ao ver o cunhado virado em ouro.
O cunhado e ministro, encantado com a transformação, saiu correndo porta afora, disposto a vender-se inteiro ao primeiro que passasse. Toda aquela agitação, entretanto, provocou uma sede terrível em Midas, que agarrou uma jarra cheia de vinho e a emborcou. No mesmo instante, sentiu que um líquido espesso e ardente lhe descia pela traquéia até cair no estômago como chumbo derretido. Aterrado, espiou para dentro da jarra e viu no fundo um restinho do ouro liquefeito que acabara de ingerir.
Tomado definitivamente pelo pavor, Midas caiu de joelhos, levantando para o alto as suas douradas mãos.
— Baco, salve-me! — implorava. Tanto gritou o desgraçado que o deus acabou penalizado.
— Eu não o avisei? — perguntou Baco.
— Me tire desta situação, pelo amor de Zeus!
— Está bem, se acalme, vou ver o que posso fazer.
Baco disse então a Midas que fosse até o rio Pactolo e procurasse a sua nascente. Uma vez encontrando-a, deveria mergulhar a cabeça nas águas, o que seria suficiente para fazê-lo voltar à normalidade.
Midas, sem esperar mais, lançou-se porta afora. Após atravessar os campos, encontrou a nascente do rio e nela mergulhou a cabeça. No mesmo instante, as areias do rio ficaram douradas e os peixes tomaram a cor do sol, deixando-o livre para sempre da maldição.
 Depois dessa cruel experiência, Midas tomou-se de tal nojo pelo ouro e pelas riquezas que decidiu morar no mato, abandonando todas as suas riquezas e indo viver na companhia de Pã, o deus dos bosques.
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O guerreiro Juliano

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Cesorius von Heisterbach (? -1245 | Alemanha)

O abade medieval Cesarius von Heisterbach escreveu em 7245, e em latim, seu Dialogus Miraculorum. Hermann Hesse incluiria alguns destes pequenos relatos em Geschichten aus dem Mittelalter (Histórias Medievais). Esta lenda de Juliano, a história de um guerreiro que viraria santo, e que se aparenta ao destino trágico de Édipo, repercutiria literariamente em pleno século XIX, com Lenda de São Julien Hospitaleiro (o que parece ter "escapado" da atenção de Hesse), um dos famosos Três Contos de Gustave Flaubert.

Era uma vez um guerreiro chamado Juliano que, sem saber, acabou matando seus pais. Pois quando esse nobre jovem, num dia de caça, perseguia um cervo, o animal subitamente se voltou para ele e lhe disse: 
- Tu que estás me seguindo serás o assassino de teu pai e de tua mãe. 
Assustou-se bastante o guerreiro, por achar que lhe poderia de fato acontecer o que ouvira do cervo. Assim pensando, abandonou a todos, partiu, chegou a terras distantes e lá conheceu um príncipe. 
Tão bravo revelou-se Juliano no campo de batalha e no palácio que o príncipe nomeou-o comandante, deu-lhe a viúva de um castelão como esposa, tendo ela um castelo como dote. Enquanto isso, os pais de Juliano viajavam de um lado para o outro à procura do filho, movidos pela profunda dor de seu desaparecimento. 

Chegaram um dia, finalmente, ao castelo onde morava o guerreiro. Quando a esposa do guerreiro viu o casal, e como seu esposo não estivesse em casa, perguntou quem eram eles; os pais contaram tudo o que acontecera com o filho, e ela percebeu que deviam mesmo ser os pais de seu marido, pois muitas vezes ouvira dele as mesmas histórias. Acolheu-os assim com muita hospitalidade e, por amor ao marido, ofereceu-lhes a sua própria cama e mandou que preparassem para si as acomodações em outro lugar. De manhã, a castelã foi à igreja, e Juliano chegou cedo e foi direto ao quarto para acordar a mulher; quando, ao entrar, viu as duas pessoas deitadas lado a lado, foi logo levado pela suspeita de que a própria esposa estivesse deitada com um amante. 
Em silêncio, sacou a espada e ao mesmo tempo matou os dois. Em seguida, saiu do quarto e, já em frente da casa, avistou sua mulher saindo da igreja. Muito surpreso, perguntou a ela quem eram os dois que dormiam na cama. E ela respondeu: 
- São os seus pais, que procuravam por você há muito tempo; resolvi colocálos no nosso quarto. Juliano quase caiu morto de horror, e pôs-se a chorar copiosamente. Finalmente

falou: 
- Ai de mim, desgraçado que sou, o que vou fazer agora depois de ter matado meus adorados pais? Entende? 
A palavra do cervo acabou se cumprindo; eu pretendi fugir a ela, e foi assim que transformei-a em verdade. Adeus, agora, minha doce irmã, pois não posso descansar até saber que Deus aceitou o meu arrependimento! 
E ela disse: 
- Meu amantíssimo irmão, você não irá me deixar, tampouco irá partir sem mim, pois, como participei das suas alegrias, quero participar também da sua dor. 
Foram depois disso morar juntos num largo rio, onde muitos corriam perigo de vida; construíram um abrigo para fazerem penitência e ajudavam a atravessar o rio a todos que os que assim desejavam e recebiam no seu abrigo todos os pobres. 
Depois de muito tempo, quando certo dia Juliano, cansado, adormecera, e fazia um frio terrível, ele escutou uma voz que gritava em tom de lamento, suplicando tristemente que a ajudasse a atravessar o rio para aquele lado. Ao escutá-la, levantou-se logo e encontrou uma pessoa já quase congelada pelo frio; levou-a então para sua morada, acendeu o fogo e procurou aquecê-la; mas essa pessoa não conseguia se aquecer. E como Juliano temesse que ela morresse em suas mãos, levou-a para a sua cama e cobriu-a bem coberta. 
Depois de pouco tempo, aquele que lhe parecera doente e leproso ergueu-se para os céus, aureolado por uma luz brilhante e disse a seu hospedeiro: 
- Juliano, o Senhor enviou-me a ti e ordenou que te avisasse de que aceitou sua penitência e de que em breve tu e tua esposa repousareis no Senhor.
 Com essas palavras o anjo desapareceu, e Juliano e sua esposa, ricos em boas obras e em misericórdia, em muito pouco tempo, repousaram no Senhor.
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