Assim que Baco, filho de Júpiter e de Sêmele, nasceu da coxa do próprio pai, este chamou Mercúrio e ordenou-lhe que levasse o garoto para ser criado pelas ninfas do Nisa, um lugar ameno e paradisíaco.
— Lá ele estará em perfeita segurança — disse Júpiter, com alegria.
O pequeno Baco foi entregue às ninfas e também a um estranho e divertido ser chamado Sileno, filho do deus Pã, que se tornou o pai adotivo do futuro deus das vinhas.
Durante seus primeiros anos Baco participou, junto com Sileno — sempre bêbado e a cair de cima de seu inseparável burrico -, de toda espécie de brincadeiras.
Mas se o velho Sileno sabia ser brincalhão — e mesmo irresponsável, muitas vezes -, também sabia demonstrar que era dono de profundos conhecimentos, que sua aparência exótica e pouco respeitável podia fazer adivinhar.
— Deixe que falem — hic! — o que quiserem! — dizia Sileno, erguendo-se do são. amparado pelo jovem pupilo.
— Sileno sabe mais — hic! — que todos os sabichões da Terra...
Um dia o jovem Baco, vestido com seu manto púrpura, resolveu ir até a praia e lá adormeceu. Neste ínterim havia se aproximado da costa um grande navio — na verdade, um navio pirata — que andava à caça de nova presa.
Um grupo de marinheiros desceu à terra para buscar água, e quando estes pisaram nas areias claras deram de cara com o belo rapaz adormecido. Sua tez delicada, seus lábios rubros e o todo mais de sua aparência denunciavam que seria filho, ao menos, de um senhor poderoso do lugar. Quem sabe, até, do próprio rei.
— Vamos levá-lo conosco — disse o mais rude daqueles homens.
— Poderemos pedir por ele um belo resgate.
Entretanto, o timoneiro, Acetes, tinha bom olho para as coisas divinas e percebeu logo que o garoto tinha algo de estranho.
— Deixemos o rapaz em seu lugar e vamos embora de uma vez — disse ele -, pois não pressagio nada de bom desta aventura.
— Virou Cassandra, agora? — disse Lícabas, o mais feroz e impiedoso dos piratas, com uma gargalhada assoprada que fez espirrar no rosto do pobre timoneiro uma chuva de seus perdigotos podres.
Acetes, conhecedor do estratagema do vilão, deixou para limpar depois o produto infecto da boca do asqueroso Lícabas, pois sabia perfeitamente -já vira, na verdade, por duas vezes acontecer o mesmo — que limpar o rosto diante dele era decretar a própria morte.
O garoto foi, então, embarcado, mas não à força, porque não opôs nenhuma resistência contra seus raptores. Estranhamente calmo, Baco só fazia observar docilmente aqueles homens sujos e cruéis.
"Verdadeiramente é um deus!", pensava o bom Acetes, observando o rapaz.
— Dirija direito este troço! — disse uma voz ao seu lado.
Era um dos piratas, que fora destacado pelo próprio Lícabas para vigiar o timoneiro.
Enquanto isto, Lícabas, que fora se tomando cada vez mais de antipatia pelo jovem deus, ordenou de repente a um de seus marujos:
— Amarrem esta mocinha! — disse, acentuando bem a última palavra.
E antes que dessem cumprimento a sua nefanda ordem, aproximou bem a horrível carranca do rosto delicado de Baco.
— Frisou hoje cedo os lindos caracóis, menina loira? — disse o sórdido Lícabas, arreganhando a horrível dentadura, na qual se podiam perceber três dentes acavalados a disputarem o mesmo espaço. Depois, tomando sua faca, enrolou um dos cachos loiros sobre o fio, como se fosse frisá- lo, mas os fios partiram-se.
— Ora, menina, que pena! — disse. — Eu só ia fazer mais um cachinho...
Um jato de perdigotos explodiu da boca de Lícabas, como a onda esbatida que o vento impele, no inverno, sobre a costa pedregosa — mas, curiosamente, nenhuma das gotas apodrecidas foi alojar-se no rosto do jovem Baco.
— Cadê a corda, sardinhas regurgitadas pelo gato? — perguntou Lícabas, que mudava de espírito como o céu muda durante o verão abrasante.
Um boçal bem mandado surgiu carregando um rolo áspero de cordas.
— Deixa ver — disse Lícabas, esfregando um pedaço sobre a parte interna do braço.
— Não serve; traga outra! Um rolo de fios de cobre espetado surgiu, nos braços do mesmo homem. Depois de testá-lo, o vil Lícabas aprovou.
-Amarrem-no, já! Três homens fortes tomaram da corda e enrolaram Baco num abraço odioso.
Mas, coisa estranha!, tão logo terminavam de fazer os nós, eles se desmanchavam como por encanto, e a corda caía aos pés de todos, sem provocar o menor arranhão na vítima.
— Imbecis! — disse Lícabas. — Tratem de fazer um nó decente ou mandarei dar um nó nas tripas de cada um de vocês! Trinta nós foram feitos, e os mesmos trinta nós desfeitos, até que o sol caísse.
De repente, porém, o navio parou em meio ao mar. Parou, simplesmente. Ninguém sabia explicar o motivo.
— O vento cessou de todo — explicou Acetes ao capitão, temendo uma reação brutal.
— Então dêem nos remos! — ordenou Lícabas, que sabia dividir o instante das punições com o instante da ação. Os remos foram lançados com estrídulo à água, mas na mesma hora viram-se enrolados por um emaranhado de algas. Ao mesmo tempo começou a subir pelo mastro a folhagem espessa das vinhas, que se espalhou por todo o convés.
— Vejam, está chovendo! — disse um dos marinheiros, estendendo a mão.
Mas não era uma chuva normal, e sim uma chuva de vinho, que num instante cobriu todos de vermelho. Alguns, é verdade, gostaram da peça e abriam suas bocas para receber o produto da grande nuvem vermelha pairada acima do barco.
Mas quando Lícabas, que não era homem para graças, enterrou uma espada dentro da garganta do primeiro, a brincadeira acabouse ali. Baco, misteriosamente, tinha agora ramos da vinha pendurados atrás das orelhas e portava em sua mão um grande tirso, com a ponta encimada por uma enorme pinha.
Como quem rege um concerto de flautas, Baco agitava o seu cetro, com um sorriso alegre estampado no rosto — o sorriso da embriaguez divina! O convés encheu-se, também, de animais silvícolas, enormes e assustadores. Enormes felinos espalhavam-se por todo o barco — tigres, linces e um jaguar que parecia divertir-se imensamente com aquilo tudo -, o que tomou os marinheiros de pavor.
— Verdadeiramente, este rapaz é um deus ou um demônio! — exclamou um deles, lançando-se borda afora. Muitos outros o seguiram, mas tão logo alcançavam a água, viam seus corpos mudarem abruptamente para algo inumano.
Lícabas, o último que relutava, ainda, em abandonar o barco, de repente começou a perder o equilíbrio.
— Mas o que é isso? Maldição! — disse, enquanto observava seus pés unindo-se por uma estranha membrana, quase transparente. Suas pernas também foram perdendo o pêlo espesso que as recobria e tornando-se lisas como a pele de um peixe. Num último instante, antes de enlouquecer, o sórdido Lícabas chegou a achar graça daquela estranha metamorfose que se operava em si próprio.
— Estarei enlouquecendo, então? — exclamou, dando sua última gargalhada. Mas não foi de sua boca que saiu, desta vez, o infame jato, mas de uma protuberância instalada bem no alto de sua cabeça.
Lícabas, bem como todos os seus homens — à exceção do bom Acetes -, haviam se transformado em golfinhos, que tubarões ferozes perseguiam em alucinante disparada.
— Sou Baco, deus do vinho e da alegria! — disse o jovem, com os olhos refulgentes, ao timoneiro.
— Leve-me de volta e instaure um templo, em meu nome, em todas as terras por onde andar, para que se possam celebrar neles os meus sagrados ritos.
Assim se fez, e desde então Baco obrou ainda muitos e mil outros prodígios.
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